Proibido para cães

Foi no dia 7 de outubro de 1849, um domingo, há 154 anos, que Edgar Allan Poe, aos 40 anos, viu pela última vez a luz do sol. Aliás, essa é uma imagem paupérrima tendo em vista o estado miserável em que se encontrava na ocasião, entre a vida e a morte, no Hospital Washington de Baltimore. Ele nasceu a 19 de janeiro de 1809, filho de atores itinerantes (Davi e Elisabeth), na aristocrática cidade de Boston, Massachusetts.

Estava hospitalizado há cinco dias, trazido pelo amigo James Snodgrass, velho conhecedor das recorrentes agruras que rondaram toda a vida desse homem martirizado, onde ficou sob cuidados do médico residente J. J. Moran. Snodgrass recebera um bilhete, no dia 3, assinado por um certo Joseph Walker, contando que alguém em péssimo estado balbuciara seu nome clamando que o chamassem com urgência. Tão logo viu o paciente, Moran diagnosticou um quadro grave de coma alcoólica.

Até os últimos dias de setembro, Poe havia estado em Richmond, cidade que amava, cortejando Elmira Shelton, antiga namorada agora viúva que finalmente aceitara-lhe o pedido de casamento, cuja data foi marcada para o dia 17 do mês seguinte.

Nunca se soube ao certo qual era a intenção de Poe, que a 26 esteve pela última vez com Elmira, a quem não revelou o plano de viajar a Nova York. Passou também pela casa de Carter, e ao sair pegou por engano a bengala de madeira de Málaca que pertencia ao amigo, deixando a sua. Outros amigos tentaram dissuadi-lo, mas ele mostrava estar decidido. Estiveram num restaurante até tarde e despediram-se ao pé da escada que levava os passageiros para dentro do navio, que zarparia às quatro horas. Testemunhas afirmam que Poe estava inteiramente sóbrio.

Pelo visto, durante a viagem que durava 48 horas ou logo que desembarcou, Poe deve ter bebido um bocado, porque o último conhecido a vê-lo antes do intervalo de cinco dias, Nathan C. Brooks, relatou que o poeta estava bastante embriagado. Presume-se que tenha caído nas mãos de cabos eleitorais – havia eleição em Baltimore – e como o controle não era rígido, candidatos valiam-se de pessoas que votavam mais de uma vez a troco de alojamento, comida e bebida à vontade. Provavelmente foi o que aconteceu.

No dia 3 de outubro, quarta-feira, depois de ter votado sabe-se lá quantas vezes, Poe foi abandonado num distrito eleitoral de bairro donde Walker enviou o bilhete a Snodgrass, que não demorou a chegar. Deparou com Poe sentado à mesa de uma tasca, maltrapilho, descabelado, sujo e com aspecto repulsivo, rodeado por rufiões da pior espécie. Depressa chamou um cocheiro e o levou, ainda aferrado à bengala trocada, ao hospital.

Durante a maior parte do tempo que ali esteve, Poe ficou inconsciente. Parentes, avisados por Snodgrass, vieram vê-lo, menos sua extremosa tia Maria Clemm (irmã de seu pai), que dele cuidou com carinho maternal nos anos seguintes ao abandono definitivo da casa dos pais adotivos. Maria era mãe da menina Virgínia, com quem Poe se casara em segredo e que falecera vítima da tuberculose e da extrema miséria, em dezembro de 1846.

A força vital foi se esvaindo e não havia mais esperança. A mulher de Moran postava-se à cabeceira do enfermo para ler trechos do evangelho de João. O biógrafo Hervey Allen escreveu: “O que Poe pensou, ninguém jamais saberá”. Na manhã de 7 de outubro, depois de intensa agonia e delírios aterradores, o coração do moribundo parou de bater.

A carreira literária de Poe, bem como sua compulsão pela bebida começaram cedo, na época em que o jovem abastado matriculou-se na Universidade de Virgínia. Seu livro de estréia, Tamerlão e outros poemas por um bostoniano (1827), com tiragem de 50 exemplares foi um fracasso, o mesmo acontecendo com os demais que escreveu. Trabalhou como redator em várias publicações da Nova Inglaterra e Nova York, sempre por salários insignificantes. Sucesso e fama, afinal, despontaram em janeiro de 1845 quando o Evening Mirror publicou O corvo, poema que logo seria reproduzido por toda a imprensa cultural existente nos Estados Unidos.

O notável descobridor do talento de Poe, no entanto, foi o poeta francês Charles Baudelaire, que segundo o compatriota Paul Valéry “o apresentou ao futuro”. Num dos prefácios que fez para as traduções dos contos e poemas do mestre absoluto, confessou que Poe “bebia como um bárbaro”. Isso não o impediu de reconhecer o óbvio que poucos enxergaram antes. Dos doze volumes que constituem a publicação definitiva de sua obra, cinco são dedicados às traduções de Poe.

O fascínio sobre Baudelaire foi tamanho, que este declarou: “A primeira vez que abri um de seus livros, encontrei, para meu espanto e gosto, não só alguns dos temas com os quais já havia sonhado, mas frases que eu mesmo imaginara, escritas por ele com vinte anos de antecipação”. Um dos amigos mais chegados do autor de As flores do mal, Champfleury, disse: “Baudelaire encarnava Edgar Poe”.

Magnetizado pelo encanto que Poe lhe transmitia, “Baudelaire sente-se moralmente obrigado a lhe prestar homenagem”, escreveu Henri Troyat. Certo dia constata “que tem mais sucesso junto ao público como descobridor de Edgar Allan Poe do que como autor original. (…) Nesse esforço de comunhão ele tem a impressão de criar ao mesmo tempo em que transcreve, de ser o senhor e o serviçal de um pensamento que não lhe pertence. (…) De qualquer modo, por ora, a prosa de Baudelaire, ainda que seja um reflexo do gênio de Edgar Allan Poe, rende-lhe mais que os seus próprios versos. As revistas publicam mais facilmente as obras de Poe ao molho Baudelaire”, do que seus próprios escritos.

Assim, cobre-se de não fingida indulgência para opinar que “como poeta, Edgar Poe é um homem à parte. Representa quase sozinho o movimento romântico do outro lado do oceano. É o primeiro americano que, propriamente falando, fez do seu estilo uma ferramenta. Sua poesia, profunda e gemente, é, não obstante, trabalhada, pura, correta e brilhante, como uma jóia de cristal”. Sobre esse testemunho irreprochável, o grande Cortazar reconheceu que raras vezes na história da literatura alguém pensou com tanto descortino e fez tanta justiça.

Outra das genialidades de Baudelaire deu-se em relação a Rufus Griswold, colega de Poe nos bons tempos do Graham?s Magazine, a quem atribuíra a deferência de escrever-lhe a biografia. Escritor e poeta claudicante que mereceu críticas até certo ponto mordazes do próprio Edgar, Rufus vingou-se desmoralizando e depreciando em primeiro lugar o homem, e depois, a obra que lhe fora confiada,

Mais ou menos 20 anos depois da morte de Poe eis o comentário fulminante de Baudelaire: “Este vampiro pedagógico difamou hediondamente seu amigo, num artigo seco e odioso, publicado como introdução à edição póstuma das obras completas de Poe. Não há, porventura, na América, um regulamento que proíba a entrada de cães no cemitério”?

A escritora brasileira Lúcia Santaella produziu um estudo crítico que acompanha o volume Contos de Edgar Allan Poe (Cultrix, SP, 1986), vertidos com excepcional qualidade pelo magnífico José Paulo Paes. A meu ver, esse estudo enfeixa o que de melhor se escreveu em português sobre o significado literário dessa obra imortal. Quem estiver interessado em conhecer Poe com mais profundidade não pode deixar de ler esse trabalho.

Encerro com a frase de Lúcia que, sem dúvida, seria epitáfio perfeito para o maior dos poetas americanos: “Poe falhou como homem do mundo para não falhar como artista”.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor, autor de Edgar Allan Poe (Nunca estive realmente louco).

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