Privatização do acervo tecnológico da Sanepar

Criada nos anos 60, a Sanepar foi resultado do Plano Nacional de Saneamento, que inspirou a criação de companhias estatais concessionárias dos serviços de saneamento básico (água e esgoto) em todo o país. Iguais na origem, tais empresas tiveram, contudo, trajetórias muito diversas. Na verdade, a estatal paranaense foi uma das poucas a dar certo. Instituída com atribuições bem definidas, dentre as quais sempre se destacaram aquelas de fomentadora de obras de grande impacto social, a Sanepar muito cedo se tornou um dos mais importantes agentes econômicos do Estado.

O reconhecimento é unânime: a Companhia Paranaense de Saneamento ? a nossa Sanepar ? é uma história de sucesso surpreendente. Em âmbito mundial. Não vai aí nenhum exagero: segundo parâmetros universalmente aceitos, a Sanepar sempre se destacou como modelo de eficiência. Quer em investimento (custos por habitante servido), quer em produtividade (número de empregados por ligação de água e esgoto), a Sanepar é padrão de referência dentre todas as companhias de saneamento brasileiras. E sempre esteve entre as companhias de saneamento mais eficientes do planeta.

Por que se destacou? O sucesso não veio por acaso, mas foi fruto de decisões estratégicas, políticas (na mais pura acepção do termo), que deram norte e direção à empresa ao longo de sua história. Dentre estas, foi sem dúvida de crucial importância a preservação do princípio da especialidade, indissociável de qualquer entidade criada pelo Estado: uma empresa, sim, porém uma empresa pública, destinada a prestar um serviço público, e com eficiência. Contribuiu também, e muito, a sistemática capacitação do seu pessoal.

Mas foi o investimento em tecnologia que fez da Sanepar a melhor empresa do setor. Através da aproximação estratégica com a Universidade Federal do Paraná, privilegiou-se a pesquisa, o que redundou no desenvolvimento de tecnologias próprias, tais como as estações compactas para tratamento de água; o tratamento anaeróbio de esgoto (gera-se energia ao invés de consumi-la); técnicas inovadoras no controle de perdas e de disposição final de resíduos (lodo de esgoto); isto para citar apenas alguns exemplos.

Para que se tenha uma idéia do que isto representa, basta dizer que cada ponto percentual de redução de perdas implica em economia na ordem de R$ 7.000.000,00 por ano. O nível de perda no Brasil está ao redor de 50%. Na Sanepar, fica na casa dos 30%.

No Paraná, o lodo de esgoto é transformado em adubo para a agricultura, após a devida higienização. A economia que fazemos é notável: aqui, custa em torno de R$ 30,00 por tonelada, contra R$ 100,00 na média brasileira.

Foi por isso que as inovações tecnológicas da Sanepar passaram a ser objeto de forte e crescente demanda, no país e fora dele. Para atendê-la, estruturou-se toda uma Diretoria de Pesquisa e Desenvolvimento, com gerências de qualidade, núcleos de consultoria e desenvolvimento e grupos específicos de intercâmbio, consultoria e pesquisa. Como resultado, a Sanepar passou a ser um verdadeiro technology provider.

Virtualmente todos os estados da federação passaram a usar a tecnologia da Sanepar, isso sem falar de contratos de prestação de serviços específicos com os Estados de Sergipe, São Paulo, Pernambuco e Ceará, dentre outros. Em âmbito internacional, trabalhos no Uruguai, Costa Rica, Argentina, Bolívia. Intercâmbio de tecnologia com todos os países da América Latina. Consultoria para os mais importantes organismos internacionais. Convênios de cooperação técnica com a França, Áustria, Japão e os Estados Unidos. Em 1993 (auge das consultorias) a Sanepar era uma empresa tecnologicamente auto-suficiente. E ainda lucrava com isso…

Por absurdo que pareça, porém, o governo que antecedeu a atual administração houve por bem descontinuar este trabalho. A pretexto de maximizar o rendimento dos profissionais engajados nas atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico, as consultorias terminaram. E, com elas, também foi desativada a área de projetos, que eram elaborados e executados “com a prata da casa”. Preferiu-se a terceirização. Hoje a Sanepar praticamente não faz mais projeto algum.

O quadro de profissionais reduziu-se em 1/3. Para repetir uma expressão que ouvi de um dos engenheiros da Sanepar, a máquina foi reduzida a pele e osso.

Tudo isso coincidiu com a chamada “privatização” da Sanepar. Mas coincidiu também com a sensível diminuição dos padrões de qualidade da empresa. Exemplos, infelizmente, não faltam. E não é apenas a água que cheira mal. A falta de manutenção e operação adequadas reduz dramaticamente a eficiência dos sistemas de tratamento de esgoto. Um reator anaeróbio que não sofre descarga de lodo na freqüência adequada apresenta redução na eficiência da remoção da carga orgânica, aumentando o potencial de poluição. Em alguns municípios o lodo gerado pelo processo de tratamento não tem disposição final adequada: é distribuído à agricultura sem o tratamento apropriado, entrando no ciclo alimentar quase in natura. Isso quando não é simplesmente jogado no rio…

E isso tudo sob a desculpa de uma economia de custos que se revelou quimérica. O que se “economizou” em pesquisa e desenvolvimento tecnológico, que até ontem geravam receita e justificado prestígio para a Sanepar, gasta-se hoje em contratos milionários para assessoria e elaboração de projetos.

A mesma Sanepar que até 1994 prestava consultoria para a FAO, para o Banco Mundial, para o PNUD e PNUMA (Programas das Nações Unidas para o Desenvolvimento e o Meio Ambiente), para a Organização Mundial da Saúde e para a Organização Panamericana da Saúde, hoje não consegue sequer projetar a rede de esgotos de Matinhos…

Chega a ser deprimente. Para projetar e gerenciar parte do Programa Paranasan, a Sanepar foi obrigada a contratar consultoria de terceiros, a um custo que já ultrapassa os quarenta milhões de reais. Até a fiscalização das obras e análise de pedidos de reajuste de preços (!) foram terceirizados para um consórcio de empresas brasileiras e do Japão. Do mesmo Japão que, em passado ainda recente, celebrava convênios de cooperação técnica com a Sanepar.

Hoje pagamos, e pagamos caro, por algo que tínhamos para dar e vender. Que sirva de lição: pior do que se vender, a preços camaradas, as ações da companhia, foi ter privatizado e de graça o acervo tecnológico da Sanepar.

Roberto Requião, advogado e jornalista, é governador do Paraná.

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