Posse de drogas para consumo pessoal

Continua acesa a polêmica sobre a natureza jurídica do art. 28 da Lei 11.343/2006 (nova lei de drogas), que prevê tão-somente penas alternativas para o agente que tem a posse de drogas para consumo pessoal. A questão debatida é a seguinte: nesse dispositivo teria o legislador contemplado um crime, uma infração penal sui generis ou uma infração administrativa? A celeuma ainda não chegou a seu final.

Os argumentos no sentido de que o art. 28 contempla um crime são, basicamente, os seguintes:

a) ele está inserido no Capítulo III, do Título III, intitulado ?Dos crimes e das penas?;

b) o art. 28, parágrafo 4.º, fala em reincidência (nos moldes do art. 63 do CP e 7.º da LCP e é reincidente aquele que, depois de condenado por crime, pratica nova infração penal);

c) o art. 30 da Lei 11.343/06 regulamenta a prescrição da posse de droga para consumo pessoal. Apenas os crimes (e contravenções penais) prescreveriam;

d) o art. 28 deve ser processado e julgado nos termos do procedimento sumaríssimo da lei dos juizados, próprio para crimes de menor potencial ofensivo;

e) cuida-se de crime com astreintes (multa coativa, nos moldes do art. 461 do CPC) para o caso de descumprimento das medidas impostas;

f) a CF de 88 prevê, no seu art. 5.º, inc. XLVI, penas outras que não a de reclusão e detenção, as quais podem ser substitutivas ou principais (esse é o caso do art. 28).

Para essa primeira corrente não teria havido descriminalização, sim, somente uma despenalização moderada.

Para nós, ao contrário, houve descriminalização formal (acabou o caráter criminoso do fato) e, ao mesmo tempo, despenalização (evitou-se a pena de prisão para o usuário de droga). O fato (posse de droga para consumo pessoal) deixou de ser crime (formalmente) porque já não é punido com reclusão ou detenção (art. 1.º da LICP). Tampouco é uma infração administrativa (porque as sanções cominadas devem ser aplicadas pelo juiz dos juizados criminais). Se não se trata de um crime nem de uma contravenção penal (mesmo porque não há cominação de qualquer pena de prisão), se não se pode admitir tampouco uma infração administrativa, só resta concluir que estamos diante de infração penal sui generis. Essa é a nossa posição, que se encontra ancorada nos seguintes argumentos:

a) a etiqueta dada ao Capítulo III, do Título III, da Lei 11.343/2006 (?Dos crimes e das penas?) não confere, por si só, a natureza de crime (para o art. 28) porque o legislador, sem nenhum apreço ao rigor técnico, já em outras oportunidades chamou (e continua chamando) de crime aquilo que, na verdade, é mera infração político-administrativa (Lei 1.079/1950, v.g., que cuida dos ?crimes de responsabilidade?, que não são crimes). A interpretação literal, isolada do sistema, acaba sendo sempre reducionista e insuficiente; na Lei 10.409/2002 o legislador falava em ?mandato? expedido pelo juiz (quando se sabe que é mandado); como se vê, não podemos confiar (sempre) na intelectualidade ou mesmo cientificidade do legislador brasileiro, que seguramente não se destaca pelo rigor técnico;

b) a reincidência de que fala o § 4.º do art. 28 é claramente a popular ou não técnica e só tem o efeito de aumentar de cinco para dez meses o tempo de cumprimento das medidas contempladas no art. 28; se o mais (contravenção + crime) não gera a reincidência técnica no Brasil, seria paradoxal admiti-la em relação ao menos (infração penal sui generis + crime ou + contravenção);

c) hoje é sabido que a prescrição não é mais apanágio dos crimes (e das contravenções), sendo também aplicável inclusive aos atos infracionais (como tem decidido, copiosamente, o STJ); aliás, também as infrações administrativas e até mesmo os ilícitos civis estão sujeitos à prescrição. Conclusão: o instituto da prescrição é válido para todas as infrações (penais e não penais). Ela não é típica só dos delitos;

d) a lei dos juizados (Lei 9.099/1995) cuida das infrações de menor potencial ofensivo que compreendem as contravenções penais e todos os delitos punidos até dois anos; o legislador podia e pode adotar em relação a outras infrações (como a do art. 28) o mesmo procedimento dos juizados; aliás, o Estatuto do Idoso já tinha feito isso;

e) o art. 48, parágrafo 2.º, determina que o usuário seja prioritariamente levado ao juiz (e não ao Delegado), dando clara demonstração de que não se trata de ?criminoso?, a exemplo do que já ocorre com os autores de atos infracionais;

f) a lei não prevê medida privativa da liberdade para fazer com que o usuário cumpra as medidas impostas (não há conversão das penas alternativas em reclusão ou detenção ou mesmo em prisão simples);

g) pode-se até ver a admoestação e a multa (do § 6.º do art. 28) como astreintes (multa coativa, nos moldes do art. 461 do CPC) para o caso de descumprimento das medidas impostas; isso, entretanto, não desnatura a natureza jurídica da infração prevista no art. 28, que é sui generis;

h) o fato de a CF de 88 prever, em seu art. 5.º, inc. XLVI, penas outras que não a de reclusão e detenção, as quais podem ser substitutivas ou principais (esse é o caso do art. 28) não conflita, ao contrário, reforça nossa tese de que o art. 28 é uma infração penal sui generis exatamente porque conta com penas alternativas distintas das de reclusão, detenção ou prisão simples.

A todos os argumentos lembrados cabe ainda agregar um último: conceber o art. 28 como ?crime? significa qualificar o possuidor de droga para consumo pessoal como ?criminoso?. Tudo que a nova lei não quer (em relação ao usuário) é precisamente isso. Pensar o contrário retrataria um grave retrocesso punitivista (ideologicamente incompatível com o novo texto legal). Em conclusão: a infração contemplada no art. 28 da Lei 11.343/2006 é penal e sui generis. Ao lado do crime e das contravenções agora temos que também admitir a existência de uma infração penal sui generis.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-Geral do IPAN – Instituto Panamericano de Política Criminal, Consultor e Parecerista, fundador e presidente da Rede LFG – Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais) www.lfg.com.br.

Rogério Sanches Cunha é promotor de Justiça/promotor Eleitoral SP. Professor de Direito Penal e Processo Penal do Curso Satelitário – Instituto de Ensino Luiz Flávio Gomes (IELF) – São Paulo/SP. Professor de Direito Penal e Processual Penal do JUSPODIVM – Salvador/BA. Professor de Direito Eleitoral da FADOM (pós-graduação) – Divinópolis/MG.

Autor do livro – Crimes funcionais, JUSPODIVM, Salvador/BA. Autor do livro – Crimes dolosos contra a vida e o procedimento do Júri, JUSPODIVM, Salvador/BA, 2004. Co-autor do livro -Estatuto da Criança e do Adolescente para concursos públicos, 1.ª edição, 2004, no prelo, JUSPODIVM, Salvador/BA. Co-autor do livro – Reforma Criminal, RT, SP, 2004.

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