O ano de 2008 marcou uma presença forte do Judiciário na cena brasileira. O poder foi acusado de invadir território do Legislativo. Em entrevista a O Estado do Paraná, o presidente da Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar), Miguel Kfouri Neto avaliou a atuação dos Tribunais Superiores que, segundo ele, tiveram que solucionar vazios legislativos deixados pelo Congresso, como a fidelidade partidária, nepotismo e direito a greve dos servidores públicos. Kfouri também respondeu ao deputado Ricardo Barros (PP-PR) que pediu para o Judiciário “pegar leve” e criticou a postura da Câmara Federal que não aprovou o reajuste para o Judiciário. Mas o presidente da Amapar não deixou de mostrar opinião contrária a de seus colegas de Brasília, ao contestar as brechas da súmula anti-nepotismo do Supremo Tribunal Federal e ao pedir mais cautela na divulgação dos nomes de políticos com a ‘ficha suja‘ na Justiça.
O Estado – Numa avaliação de 2008, o Legislativo atribui o fraco desempenho a problemas internos e interferências de outros poderes: do Executivo com o excesso de medidas provisórias e do Judiciário por legislar em vez de julgar. Houve interferência?
Miguel Kfouri Neto – Com essa questão das medidas provisórias eu concordo. Isso é uma cópia mal feita da constituição italiana, que prevê o uso das medidas provisórias. Porém, segundo consta, somente uma vez o governo italiano, através do primeiro-ministro, lançou mão de uma medida provisória, que tem que estar jungida ao principio da necessidade, gravidade extrema e urgência. Aqui no Brasil, não precisa ser grave ou urgente pra ser objeto de medida provisória. Estamos vendo um festival de medidas provisórias. Tudo o que o governo não consegue por projeto de lei consegue por medida provisória. E o Congresso tem razão de reclamar. Mas quanto à “atuação legislativa” do Judiciário, eu discordo. Onde a Justiça atuou, como nepotismo e fidelidade partidária, foi por necessidade, pelo vazio absoluto de qualquer regramento legal pelo Congresso.
OE – Por que o Judiciário interviu nesses casos?
MKN – A resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que vetou o nepotismo no Judiciário é de 2005. Então hoje você não tem um parente de desembargador e juiz ocupando qualquer cargo comissionado. Houve essa avalanche de ações propostas pelo Ministério Público no Executivo e no Legislativo, mas todos mantém parentes em cargo de comissão, pois não há nenhum regramento. Então, não restou ao Supremo Tribunal Federal (STF) outra possibilidade que não suprir esse vácuo legislativo, como já tinha sido aplicado ao próprio Judiciário. Quanto à fidelidade partidária, não tenho dúvida que os políticos não se rebelam contra a resolução. Eles só foram contra a cassação do deputado. A Câmara não queria dar posse ao suplente e, mais uma vez, o Supremo não teve outra alternativa a não ser determinar que se cumprisse o que determinou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Existem vários dispositivos da Constituição a espera de legislação reguladora infra constitucional e até hoje, 20 anos depois da Constituição, o Congresso não legislou. Um exemplo é a questão de greve do funcionalismo publico, que até hoje não há nenhuma normativa que o Congresso tenha legislado. E ainda assim, essas investidas do STF são bastante tímidas. Em que momento o Judiciário extrapolou? Ele teve que editar algumas normativas dentro do vazio legal. Já que há um vazio normativo, ao Judiciário cabe a construção, por equidade, daquela lei que vai reger o caso. A decisão da Justiça é a lei do caso concreto e só serve para aquele caso concreto. Não é abstração, uma lei que atinge o Brasil inteiro.
OE- Como o senhor vê a reação no Congresso? Há indisp,osição com o Judiciário?
MKN – Em decorrência dessas ações do Supremo, querem estabelecer mandato para ministro do STF, alterando todo o modelo histórico que vem desde o Brasil Império. A vitaliciedade, que é um dos predicamentos da magistratura, está sendo jogada no ralo. O que está havendo é pura retaliação. O que querem é tentar subordinar o Judiciário. Os políticos nunca engoliram essa história de o Judiciário cassar mandato, decretar inelegibilidade. O fundamental é manter a independência do Poder Judiciário, embora já dependemos da torneira de recursos do Executivo. Se alterar a fisionomia de nossa corte suprema, criando uma corte essencialmente constitucional e não que julgue tudo como o nosso Supremo, aí sim até se pode estabelecer mandato.
Mas se acham que os ministros estão ficando muito tempo no Supremo, que se indique, das próximas vezes, ministros mais velhos. Pois todos tem aposentadoria compulsória aos 70 anos e é o presidente quem os escolhe, passando por sabatina no Congresso. De outra forma, é pura retaliação. Mas a maior retaliação é que desde 2006 a Câmara sentou em cima do projeto de lei que repõe a inflação aos vencimentos do Judiciário. É uma retaliação sem a menor razão de ser. O juiz é a garantia do povo. E querem enfraquecê-la. Magistratura forte, povo forte. Se o juiz for fraco, ceder a essas rumores da políticas, pegar leve com o criminoso, com o improbo com o desonesto, como querem os deputados, o prejudicado é o povo.
OE – O deputado Ricardo Barros (PP-PR) declarou que se o Judiciário quer ver aprovados os projetos de seu interesse na Câmara, terá de fazer concessões. Os juízes vão ter de negociar com a Câmara para conseguir o reajuste?
MKN – Ele falou pior. Falou que os juizes têm que “pegar leve”. Eu respeito o detentor de mandato. Agora, esse deputado, que infelizmente é do Paraná, falou o maior absurdo que já ouvi. O sujeito quer que o juiz negocie a função judicante. Que pra receber uma vantagem, que não é vantagem, é imposição constitucional, o juiz tem que pegar leve: “não me condenar, nem meus parentes, nem meus correligionários”. Onde está a lei? onde está a Justiça? É um absurdo. Ficar negociando, qual é a do cara?
OE – Outra ação criticada pelos parlamentares foi a divulgação dos candidatos “fichas-sujas” pela Associação dos Magistrados Brasileiros. O senhor concorda com a divulgação dos nomes?
MKN – Eu achei que houve exagero. Acredito que para afirmar que alguém é um “ficha-suja” tem que haver decisão com trânsito em julgado, definitiva. Senão, depois você pode ser absolvido e o que eu, um representante do Judiciário, vou dizer depois. Sou contra essa divulgação indiscriminada. Mesmo a simples divulgação do nome já é um problema. Porque, às vezes, pode haver uma acusação infundada. Um inimigo do político usa o Judiciário como meio para atingi-lo. Faz uma denuncia sem pé nem cabeça e o sujeito já entra na lista dos fichas sujas. Um bom exemplo é o do Gilberto Kassab, em São Paulo. Ele foi condenado por improbidade em primeiro grau.
Por unanimidade, o Tribunal de Justiça de São Paulo o inocentou. Todos os 25 desembargadores disseram que ele não cometeu o crime. Mas, pelo fato de ter havido recurso do Ministério Público, o processo segue em tramitação e ele continua na lista de fichas-sujas. Será que é justo? Por isso acho que tem de haver cautela. Por outro lado, uma condenação, mesmo que em primeiro grau, é um fato público e ninguém pode impedir sua divulgação. Mas, isso, feito pela associação dos magistrados Brasileiros, confere muita credibilidade. São os juízes dizendo que o cara é ladrão. Assume uma aparência de algo oficial. Por isso que defendo a cautela.
OE – O senhor concorda com a brecha criada para agentes políticos na súmula antinepotismo?
MKN – Já que se editou uma súmula, ela deveria ser absolutamente incisiva. Ao deixar brecha, dá a impressão de que a sú,;mula foi mal elaborada. A regra que se aplica ao Judiciário teria de ser aplicada nos outros poderes. Meu filho era meu assessor, um excelente profissional e pessoa da minha maior confiança. Veio a resolução do CNJ, não houve dúvida, ele foi embora. Decidiu mau o Supremo a partir do momento que permitiu esse tipo de brecha.
