Poetas e leitores no diálogo com a literatura

Aprendi com o tempo que poetas, romancistas e dramaturgos se diferenciam das demais pessoas por força da escrita, e porque observam melhor a realidade e, pensando-a, conseguem expressar idéias diferentes das do senso comum, apresentando-as sob uma ótica nova -ex-ótica – revelando aos leitores um mundo novo.  

No entanto, a busca da novidade por ela mesma não capacita bons escritores. Victor Chklovski, em Técnica da profissão do escritor (Technique du métier d? écrivain) afirma que, aos 18 anos, dificilmente alguém se torna escritor de qualidade e pode viver somente de literatura. Para tanto, defende ele, uma outra profissão se faz necessária (até mesmo para proporcionar um conhecimento e um olhar mais específico sobre a realidade), assim como a leitura exaustiva e consciente de bons autores. ?Esse trabalho de análise das obras de outros escritores?, diz ele, ?é muito importante para que o escritor possa conservar sua autonomia. Há entre nós jovens autores que hesitam em ler outros escritores, com medo de imitá-los. Esta é uma atitude errônea, porque é geralmente impossível escrever fora de uma forma. Todos os procedimentos de criação de um texto literário são já fruto da experiência de centenas de pessoas nascidas antes de nós.?

Evidentemente, para conhecer essa ascendência literária é preciso ler. E muito. ?Ter a idéia precisa do trabalho de um outro escritor nos permite não fazer ao modo dele, coisa que, em literatura, é proibida e se denomina plágio, mas de utilizar o seu método para fabricar um material novo.?

Em recente entrevista, Lya Luft distinguiu os dois tempos de sua obra ao tratar da questão de leitura e da intertextualidade. Ao ser perguntada sobre influências em sua obra, afirmou: ?Nessa altura da vida [68 anos] não devo mais ter influência de outros escritores. Mas, na juventude, penso que meus ídolos eram: na poesia, Mário Quintana e Cecília Meireles; e na prosa, Lygia Fagundes Telles e Virgínia Woolf. Depois, passei a escrever como Lya Luft. O que me inspira? Tudo: a vida, meu interior, sonhos, fantasias, observações. O inconsciente?. Para ela, escrever ?dá alegria?, e o leitor é seu ?cúmplice?.

A procura e a necessidade dessa relação cúmplice não se manifestam de forma alguma sob uma bandeira exclusiva. Segundo a escritora, ?a arte não tem função didática nem pedagógica. Ela pode servir para inquietar ou para encantar, para fazer refletir, para fazer curtir?.

O texto de Chklovski é de 1927 e a entrevista com Lya Luft data de oitenta anos depois. Apesar da diferença temporal, as idéias de um e de outro não são novas. Entretanto, essas idéias não chegaram ainda à maior parte dos espaços educacionais. Mostram como a educação para a leitura vem a reboque, e em passos trôpegos. Se assim não fosse, seria inútil continuar a escrever sobre a formação do leitor, em especial, a do leitor de literatura.

Em abril de 2006, Autran Dourado disse em entrevista à Entrelivros: ?Os clássicos são importantes porque são permanentes e você vai lendo e selecionando. Até o final da vida restam uns seis ou sete? . Este processo seletivo apurado pôde ser adotado porque Autran Dourado se considera ?um leitor voraz?. Mesmo com essa voracidade e freqüência sistemática na leitura dos clássicos, ele considera que ?escritor é aquele que escreve com dificuldade. Quem escreve com facilidade é orador?. Ou como afirmará em outro momento da entrevista, facilidade atribuída a um escritor da categoria ?fabricante de livros?.

Qual o propósito desse entremear de falas de escritores e críticos literários? Que relação mantém com a formação de leitores? E a escola?

Relações de amor e ódio, diria eu. Relações de enganos e acertos, diria eu ainda. Relações perigosas, enfim. Digo eu.

Adotamos na metodologia de trabalho com a literatura a mensuração da leitura pela quantidade e pelo atendimento a interesses difusos, que acreditamos honestamente possam nortear a formação de leitores críticos. Esclareço melhor: trabalhamos com parâmetros de adequação (idade, linguagem, assunto, acesso ao livro) para uso imediato e resultado acelerado. Na melhor intenção de aplainar os caminhos do leitor, retiramos deles todos os obstáculos, para impedir que o caminhante desista nas primeiras páginas. Nossa melhor intenção de convencer crianças, adolescentes e adultos de que ler é uma atividade enriquecedora termina por promover concessões de qualidade e desvios em relação à natureza mesma do texto literário que resultam em leitores preguiçosos, acomodados e distantes cada vez mais dos melhores textos que o homem escreveu ao longo da história.

Não acredito que a leitura de textos superficiais no pensamento, reiterativos e vulgares na forma escrita, rocambolescos na intriga, descartáveis, sem questionamentos e problematizações conseqüentes sirvam para outra finalidade a não ser a dupla entreter-e-esquecer. Nem se escreverá com qualidade devorando maus livros, nem se pode pensar em atingir algum estágio de criticidade sem o conhecimento de textos significativos. O que vale para qualquer ciência. Mais ainda para a formação de leitores críticos.

Leitor (e professor) que se satisfaz com a rotina de textos de formato semelhante e sem desafios, é quase certo que passará pela leitura ?em brancas nuvens? e, tal como no poema de Francisco Otaviano, sem ter vivido efetivamente a natureza da literatura.

Para quem não o conhece, reproduzo a seguir, para leitura e re-leitura (com as devidas substituições), acentuando, porém, que desgraça e sofreu são termos românticos descabelados, que não postulo para a formação do leitor:

Ilusões de vida

Quem passou pela vida em branca nuvem

E em plácido repouso adormeceu;

Quem não sentiu o frio da desgraça,

Quem passou pela vida e não sofreu,

Foi espectro de homem – não foi homem,

Só passou pela vida – não viveu.

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