PLANOS DE SAÚDE – Reajustes abusivos mesmo consentidos pelos usuários não prevalecem diante do interesse público

A saúde pública é um direito de todos. É de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e assistência pública, inciso II, art. 23 da CF.

O Constituinte de 1988, ao escrever a nossa Lex Legum, teve em vista o homem o desenvolvimento da pessoa humana na sua integralidade, daí a proteção total ao direito de cidadania, que não pode ser desvinculado da proteção de todos os bens inerentes à vida, assegurando aos seus cidadãos o direito ao trabalho, ao salário, à cidadania e à própria dignidade humana, dando, inclusive, prevalência ao social em detrimento do mero interesse particular do lucro (CF, art. 5.º, XXIII, art. 170, III), dentre inúmeros outros. Cabe destacar o direito à segurança, à saúde, à habitação, a um ambiente ecologicamente equilibrado, enfim a uma qualidade de vida superior.

O direito à saúde é instituto de ordem pública, direito inalienável e irrenunciável. Garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

São ainda de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

Diante da natureza cogente das normas de ordem pública, fica afastada a possibilidade de sua derrogação pela vontade das partes, qual seja a causa e ou o pretexto utilizado, de modo que o interesse particular não sobrepuja o interesse público, prevalecendo-se o princípio fundamental constitucional que empresta suporte à limitação à autonomia da vontade.

Os concessionários dos serviços públicos beneficiários das autorizações do Estado para atuar em áreas de responsabilidade social do Poder Público, incluindo-se as da área da saúde, têm o dever de zelar pelo interesse público, não causando danos à economia popular, aos já corroídos rendimentos da população impostos pelas leis de mercado.

Não obstante isso, sem ater-se à necessária e fundamental preocupação com a eficiência de uma administração empresarial eficiente – controle eficaz e sério das receitas e despesas – tem sido habitual empresas privadas usarem de todos os meios possíveis para jogar os seus custos excessivos mal administrados nos ombros dos consumidores e usuários, numa espécie de empreendimento capitalista sem riscos.

Os ônus e os riscos da atividade empresarial privada cabe única e exclusivamente ao empresário. Na administração pública não se admite irresponsabilidade do administrador que tem que se ater aos princípios da eficiência, legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade exigidos pelo art. 37, caput, da Lex Legum.

Em razão disso, entendemos que o consumidor não deva aceitar a alteração contratual ou aderir a adaptações que entenda lhe ser prejudicial, mais onerosa. Deve procurar a Justiça neste casos. Principalmente em caso de medidas urgentes e rápidas, em face da prevalência da relevância pública dos serviços de saúde, que veda o direito de as partes transacionarem livremente. E se o fizerem o ato estará inquinado de nulidade absoluta e insanável.

O doutor em Direito pela UFMG, César Fiúza, ensina que este entendimento decorre da teoria das nulidades vigente em nossa legislação, divididas em nulidades de pleno direito e nulidades dependentes de rescisão:

“As nullidades de pleno direito ou nascem da violação das leis prohibitivas, promulgadas no interesse da ordem publica, porque aquillo que se faz contra a prohibição da lei é nullo, ainda que não esteja expressamente declarada a clausula annullatoria; ou nascem das leis constitutivas das formulas ou condições essenciaes dos actos que ellas instituem”. (Ensaio Crítico Acerca da Teoria das Nulidades, publicado na Revista do Curso de Direito da FUMEC Vol. 1 – 1999, pág. 19).

Presentes esses abusos contra o direito do consumidor e ou da economia popular, o Poder Judiciário, quando provocado, analisa tais atos e ou contratos, limitando o poder do contratante economicamente mais forte de ditar e de predispor sobre as condições anteriormente contratadas.

Para a Justiça, prevalece a lei e não a vontade individual e ou contratual, sendo de se esclarecer que o próprio Código de Defesa do Consumidor que também encerra norma de ordem pública autoriza a revisão contratual e a declaração de nulidade de pleno direito de cláusulas contratuais abusivas, o que pode ser feito até mesmo de ofício pelo poder judiciário, como já decidiu o TJRS – APC 70002885192 – 14.ª C. Cív. – Rel. Des. Sejalmo Sebastião de Paula Nery, decisão publicada no DO de 08.11.2001.

A Resolução CGPC n.º 1, de 20 de dezembro de 2000 (DOU 21.12.2000) estabelece ainda em seu art.1º que as entidades fechadas de previdência privada patrocinadas por entidades públicas, inclusive empresas públicas e sociedades de economia mista, quando da revisão de seus planos de benefícios e serviços para ajustá-los atuarialmente e seus ativos, deverão observar, a partir de 16 de dezembro de 2000, a paridade entre a contribuição patrocinadora e contribuição do segurado.

Art. 4.º da Lei Orgânica da Assistência Social estabelece que a assistência social reger-se-á pelos seguintes princípios:

I – supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica;

II – universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas;

III – respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade;

IV – igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais, e

V – divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios para sua concessão.

A finalidade institucional da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS – é a promoção da defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulamentar as operadoras setoriais, até mesmo em suas relações com prestadores e consumidores e contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no Brasil. Esta é a sua missão precípua, apresentada em seu site – www.ans.gov.br.

Contrária à sua missão, publicou a Resolução Normativa 19, em 11 de dezembro de 2002 (vigente a partir desta data), promovendo a defesa de interesses das operadoras de planos privados de saúde.

A Diretoria Colegiada da ANS, entendendo que definir mecanismos de correção do desequilíbrio das carteiras das operadoras de planos privados de assistência à saúde representa um instrumento para regulação do setor de assistência suplementar à saúde, determinou a Revisão Técnica dos planos privados de assistência à saúde – individuais ou familiares – mantidos pelas operadoras que tenham sido contratados até 1.º de janeiro de 1999.

No artigo 2 da mencionada RN, “… Define-se por Revisão Técnica a correção de desequilíbrios constatados nos planos privados de assistência a saúde a que se refere o art. 1.º, mediante reposicionamento dos valores das contraprestações pecuniárias, mantidas as condições gerais do contrato…”.

As operadoras, para evitar a quebra, mediante autorização da ANS, poderão impor aos consumidores alterações unilaterais nos preços. Desta forma, o usuário pagará mais por plano de saúde deficitário e/ou mal-administrado e este reajuste ‘salvará’ as operadoras em situação financeira precária.

Cumpre salientar que a esses percentuais somam-se os reajustes anuais dos planos, aplicados na data de vencimento.

Segundo a ANS, os usuários de um plano de saúde autorizado à Revisão Técnica devem aderir compulsoriamente às mudanças. Obviamente, será onerosa ao consumidor a adaptação do contrato antigo às novas regras. Adaptar, neste caso é sinônimo de majorar o preço.

O setor de planos de saúde é um dos que mais apresenta abuso contra o consumidor e permanece entre os campeões de queixas nos Procons. Por isso, o associado/consumidor deve estar alerta a qualquer solicitação da empresa ou assinatura de documentos.

Percebe-se que a Agência Nacional de Saúde não defende – como deveria – os direitos do consumidor porque é condescendente com os pedidos de reajustes das operadoras.

É importante salientar que o faturamento das empresas privadas de assistência à saúde supera o da Ford e Volkswagen juntas. Muitas gozam de isenções tributárias porque atuam como “entidades filantrópicas”. Estudo da Capitolio Consulting, veiculado na imprensa em agosto de 2002, forneceu o perfil da previdência complementar oferecida ao mercado por bancos e seguradoras. O setor gerou, em 2001, receitas da ordem de R$ 31 bilhões (em torno de 2,6% do PIB), administrando reservas institucionais da aproximadamente R$ 37 bilhões.

Segundo entidades integrantes do Fórum de Acompanhamento da Regulamentação dos Planos de Saúde, “… a proposta da ANS repassa inteiramente para o consumidor o risco e o ônus da atividade do negócio; garante às operadoras a segurança de ver solucionado seus problemas econômicos e financeiros; e impõe ao usuário o aumento da mensalidade do seu plano de saúde e ou a perda de rede credenciada.

Assim, sem socorrer-se à tutela estatal, ao Poder Judiciário, os consumidores serão levados a aderir às propostas dos aumentos abusivos já de praxe, pagando pela má administração das operadoras…” restando inobservados os princípios, quer os da administração, eficiência, legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, quer o da responsabilidade pelos riscos e ônus do negócio, pelo empresário.

Ana Candida Echevenguá

é advogada em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Luiz Salvador é advogado trabalhista em Curitiba e em Paranaguá.defesatrab@uol.com.br  
www.direitodotrabalhador.com.br

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