Perfil, em preto e branco, de um hipocondríaco crônico

Chamava-se – e chama-se ainda, pois continua vivo da silva – Jefferson Lincoln Washington. O pai era um americanófilo radical. Teria adorado, se vivo fosse, a invasão do Iraque, de triste memória.

Há vinte ou trinta anos, in ilo tempore, tinha olhos cor de cinza, frios, gélidos. Chegavam a provocar resfriados em que os fitasse por mais de cinco segundos consecutivos – ou dez alternados. Se pupilas disparassem balas, os perdigotos da saliva fossem venenosos e as unhas fossem estiletes, ele seria um assassino ambulante. Talvez um “serial killer”.

Além disso, era um tipo estranho, singular. Aliás, singularíssimo. Havia na sua arquitetura biopsicológica algo de onírico e fantasmagórico. Senti muitas vezes a tentação surda de dar-lhe um beliscão na bochecha ou na orelha, ou mesmo um murro plebeu no seu nariz com pretensões helênicas – ou aristocráticas. Só para ver se ele não se esfumaria no tempo e no espaço, com um saco translúcido de névoa.

Soube que foi rebelde desde menino. E a sua rebeldia se manifestava sobretudo contra a ortografia e a gramática – e os números primos. Dizia que só gostava dos tios.

Na adolescência, teve um sonho que morreu no útero. Ou melhor, na placenta. Desejou ser escafandrista no agreste pernambucano ou no cariri cearense. Alguém lhe demonstrou por A mais B que se tratava de um sonho antishakespeareano – de uma noite de inverno, não de verão. Aceitou as ponderações. Mas ficou triste.

Mais tarde, sonhou ser bombeiro. Mas não bombeiro propriamente dito, apagador de incêndios – espontâneos ou provocados. Nem mesmo fabricante de explosivos. Queria ser mesmo produtor de bombas de confeitarias, com muito creme e chocolate. Por motivos óbvios. Adorava bombas, o supremo guloso. Mas, de repente, uma alergia qualquer o impediu de comer para sempre a sua guloseima predileta. Com isso, o desejo de ser bombeiro também se dissolveu, como nuvem rala num céu primaveril. E ele novamente ficou triste.

Por interferência de um pistolão – de alto calibre -, acabou por conquistar uma sinecura, na qualidade de funcionário público: fiscal de rendas, na delegacia da Fazenda. Mas foi também efêmera, fugaz, a sua odisséia – ou ilíada – de barnabé em trânsito. Talvez porque ele se interessava mais, não por rendas financeiras de pessoas físicas e jurídicas, mas por outras rendas, de mulheres públicas, curtidas na solidão aconchegante de alcovas de reposteiros escarlates. Acabou exonerado “a bem do serviço público”.

Saía, portanto, de ego bastante machucado, da vida pública – para a privada.

Alguém o chamou, um dia, de bucéfalo. Perdão, equivoquei-me: foi chamado mesmo, de centauro. Só que a distribuição animal não era mezzo a mezzo: a parte humana representava dez por cento; a cavalar – ou melhor, asinina, como dizia um desafeto – era de noventa por cento. E os seus coices, como diria o excelente Agripino, não eram de modo algum coices de leitão com artrose nos membros posteriores. Longe disso.

Já disse que adorava chapéus? Não disse. Mas nunca os usou por uma razão prosaica: era macrocéfalo. Não havia chapéu que lhe servisse. Poderia apenas usá-los, se usasse, como almofadas putativas.

Era – in ilo tempore, repito -um cético e um cínico. Ceticamente cínico. Cinicamente cético. Seria porventura um infeliz radical? Talvez não fosse. Creio que não. Acontece que, simplesmente, ele não era feliz. À maneira do soneto famoso de Vicente de Carvalho, a felicidade estava sempre, sim, onde ele a punha. Só que ele, coitado, nunca a punha onde ele estava…

Tinha sonhos repetidos, recorrentes, repetitivos, que mereceriam talvez a exegese de Freud ou a hermenêutica de Jung. Num deles, era um unicórnio passeando entre deusas e ninfas, nas alamedas dos jardins do Olimpo. Mas mesmo nesse sonho, uma angústia inominável o atormentava: a de faltar-lhe o segundo apêndice frontal. No caso, heterodoxo. Onde e quando teria perdido o dito cujo? Era uma dúvida quase hamletiana.

Não gostava, nunca gostou de políticos. Dizia ele, ou melhor, proclamava ele, urbi et orbi, a quem quisesse ouvir:

– São todos imbecis. Pensam exatamente como eu penso…

Adiante. Em outro sonho (volto à cosmografia onírica do bom Washington), ele era um dragão. Mas não um dragão consuetudinário, como costumam ser todos os dragões de fábulas, parábolas e mitos. Vomitava fogo, sim, mas não penas ventas – pelo rabo. O buraco era mais em baixo. Aí, a análise do sonho prescindia de qualquer Daniel em disponibilidade para interpretá-lo. Afinal, ele sofria – e como sofria – de hemorróidas. E não é preciso dizer mais nada. É?

Em outro sonho, ele era Midas. Mas um Midas al revés, um Midas às avessas, como Alfonso Reyes – ou seria Octávio Paz? – definiu o poeta Sá Carneiro. Um Midas que, tocando com a ponta dos dedos qualquer metal nobre -prata, ouro ou platina -, o transformava inexoravelmente em m… Digamos logo a palavra em inglês mesmo -sheat – para não ferir susceptibilidades vernáculas ou agredir sensibilidades cândidas.

Outra coisa. Era um idealista nato, congênito. Considerava, à maneira de Mencken, que sendo a rosa mais perfumada que a alface, necessariamente seria também mais nutritiva. Assim, a título experimental, resolveu fazer uma salada de pepino, batatinha e pétalas de rosa. Mas não conseguiu comê-la: as batatas estavam meio encruadas.

Lembro-me ainda de que ele era – ou foi – um wagneriano convicto. Não obstante, pertencia ao grêmio dos que confundem sempre Bayreuth com Beirute. Paciência.

Deixei de ver o Washington por mais de vinte anos. Soube que andou peregrinando, peripateticamente, pela Europa, França e Bahia, à maneira do poeta. Encontrei-o há poucos dias. Perguntei-lhe como ia passando. O boquirroto de outrora – in ilo tempore ele costumava falar pelos cotovelos, se não pelos calcanhares – respondeu-me, heterodoxamente, com um monossílabo:

– Mal…

Estranhando o laconismo inesperado, bem como o timbre melancólico da voz antigamente metálica, eu quis saber mais:

– Mas o que é que você tem mesmo, meu caro?

Aí, ele foi mais prolixo:

– Estou com uma doença incurável. Talvez a única doença verdadeiramente incurável…

Lembrei-me então de que ele sempre fora – e continuava sendo, pelo que parecia -um hipocondríaco notório. Assim retruquei, com uma dose de irreprimível perplexidade:

– Mas que doença é essa, santo Deus?

Ele voltou a ser lacônico:

– Velhice…

Mais não disse. Seguiu em frente, sem sequer se despedir. Andava algo curvado, algo cambaleante, algo lento, exalando uma aura de melancolia. Acompanhei-o com o olhar, até que ele desapareceu numa esquina. E, então, eu próprio fiquei triste.

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