Passando do limite

Unanimidade contra. É isso que o presidente Fernando Henrique Cardoso obteve com a recente edição de um decreto que dá à Receita Federal superpoderes para bisbilhotar a vida de pessoas e empresas que eventualmente venham a movimentar quantias superiores a R$ 5 mil (pessoas físicas) e R$ 10 mil (pessoas jurídicas) de uma só vez. Enquanto representantes do novo governo admitem que a medida poderá vir a ser revogada, setores da sociedade organizada, como a Ordem dos Advogados do Brasil e a Confederação Nacional da Indústria, anunciam contestação judicial vigorosa perante o Supremo Tribunal Federal.

Os próprios ministros do STF torceram o nariz. O presidente da Suprema Corte, Marco Aurélio de Mello, considerou o conteúdo do decreto um instrumento autoritário, comparando-o à realidade narrada no livro 1984, de George OrwelL, em que a população é vigiada ininterruptamente por câmeras e pelo Grande Irmão ? o Big Brother. No caso, o irmão bisbilhoteiro seria o secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, e sua equipe, que também conquistaram recentemente, por medida provisória, autonomia quase que total. A respeito das intenções objetivadas com a medida, o presidente do STF fez uma pergunta oportuna: “Não será instrumento de coação política, para falar o mínimo?”.

Se quisesse apenas fiscalizar a lavagem de dinheiro oriundo de fontes menores, como o narcotráfico, não precisava o governo ir tão longe. Já tem, aliás, a CPMF ? Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, que permite auferir o volume de transferências de qualquer monta.

O decreto presidencial obriga os bancos a informarem a Receita sempre que uma empresa ou pessoa física movimentar somas maiores, a exemplo de norma que existe nos Estados Unidos e em alguns países da Europa. Acontece que lá a soma a partir da qual é obrigatória a comunicação está fixada em dez mil dólares ? bem distante dos cinco mil reais daqui. E qualquer coisa além disso, os governos daqueles países dependem de ordem judicial expressa.

Disse o secretário-adjunto da Receita, Jorge Rachid, que não se trata de quebra do sigilo bancário, garantido pela Constituição, mas apenas da transferência desse sigilo para a Receita Federal! Ora, o sigilo é do cidadão ou da pessoa jurídica, não do banco. Por isso a “transferência” alegada seria, no entender de especialistas, simplesmente impossível, além de absurda. Ao que consta, nem durante o regime militar e outras ditaduras brasileiras ousou-se tanto.

Cansa-se o presidente FHC de afirmar que o maior mérito de seu governo, à falta de outro, seria esse de ter consolidado a democracia. Preciso ver o que ele entende exatamente por democracia. Com o decreto que assinou restam dúvidas se o objetivo seu era de fortalecer a democracia ou entregar o cidadão à bisbilhotice do Estado, como nos velhos tempos do SNI. Ainda lhe restam alguns dias de governo que poderiam ser aproveitados para revogar a medida. Em nome da democracia.

Voltar ao topo