Parcelamentos de débitos fiscais à revelia da Lei n.º 10.684/03 – Efeitos penais

O Governo Federal através do denominado REFIS II, instituído pela Lei n.º 10.684/03, autorizou o parcelamento de débitos junto à Secretaria da Receita Federal ou à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, com vencimento até 28.2.2003, sendo vetado pelo Presidente da República, o artigo 5.º, § 2.º, que autorizava a concessão esta benefício também às dívidas oriundas de omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas dos empregados.

Esta norma legal, além de tratar de questões fiscais e administrativas, no artigo 9.º dispôs também sobre matéria de direito penal material e processual penal, prevendo a suspensão da persecução criminal e da prescrição, durante o período em que durar o parcelamento do débito, assim como a extinção da punibilidade, com o pagamento da dívida parcelada. Verbis:

É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1.º e 2.º da Lei n.º 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.

§ 1.º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.

§ 2.º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.”

Temos conhecimento de que órgãos públicos credores de tributos, tanto municipal, estadual ou federal, têm admitido o parcelamento das mais diversidades de créditos, ainda que tenham origem em sonegação fiscal ou sejam oriundos de omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas dos empregados, para os quais, alguns defendem que haveria vedação de parcelamentos.

Qual seria a conseqüência penal para aqueles que, pagaram ou parcelaram os tributos ou contribuições previdenciárias, não referidas pela lei n.º 10.684/03?

Para responder esta indagação é necessário observar alguns aspectos desta norma, assim como princípios de direito penal e processual penal que a envolvem, e outras questões relacionadas com a competência para gerenciamento da administração pública.

Num primeiro plano observa-se que o citado artigo 9.º, trata exclusivamente de matéria penal e processual penal, estando topograficamente disposta na lei em comento, por pura coincidência e pela inegável falta de técnica legislativa, porque ele nada tem a ver com tributo no aspecto fiscal ou administrativo.

Poderia perfeitamente esta previsão estar disposta em outra lei que tratasse de direito penal ou processual penal, ou em norma única, sem qualquer vinculação com a lei em análise. Isto é. As disposições do art. 9.º não dependem dos demais regramentos da Lei 10.684/03, para terem aplicabilidade. Portanto, não possuem interdependência entre si para sua efetivação, e nem se completam, ao ponto de uma não ter eficácia sem a outra.

Por isso, para interpretação deste artigo não podemos considerar que as disposições nele contidas estejam umbilicalmente interligados com as demais matérias reguladas pela lei em analise, haja vista serem elas totalmente independentes.

Assim, havendo o parcelamento ou pagamento do débito fiscal, independentemente da existência ou não de embasamento legal autorizando esta providência pelo devedor e credor, incide a regra penal e processual penal.

Neste diapasão podemos afirmar que todos aqueles parcelamentos, ainda que admitidos sem previsão nesta norma, estão abarcados pelo artigo 9.º da Lei em análise.

Esta nossa assertiva pode ser constatada sob o amparo da retroatividade da lei mais benéfica (CP, art. 2.º e CF, art. 5.º, XL), assim como a competência do Poder Executivo exercer a direção da administração, independentemente de autorização do Poder Legislativo, e ainda na vedação de tratamento diferenciado em matéria tributária.

Segundo reza o artigo 84, inciso II, da Constituição Federal, “compete privativamente ao Presidente da República, exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal.” Portanto, cabe ao Chefe maior do Executivo administrar de forma direta ou indireta, todas as questões ligadas aos Ministérios Federais.

Cuidando das atribuições dos Ministros de Estado, o artigo 87, inciso IV, da Carta Magna, prevê que compete a estes agentes políticos “praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem outorgadas ou delegadas pelo Presidente da República.”

Interpretando estas regras constitucionais constata-se que cabe ao presidente da República, exercer a direção da administração federal, com o auxílio de seus Ministros de Estado, estado aí incluída também a escolha da forma de cobrança dos débitos tributários, inclusive com concessão de benefícios para incentivar o pagamento pelos devedores.

Este gerenciamento (direção da administração) chega ao ponto de conferir aos Chefes do Poder Executivo a atribuição de conceder anistia ou isenção de tributos (CTN, arts. 180/182), o que, convenhamos, é mais que conceder parcelamento. Assim, pelo princípio da lógica, de quem pode o mais pode o menos, se o Executivo tem competência para conceder anistia ou isenção de imposto, também tem para autorizar parcelamento.

Se cabe ao Presidente da República a direção administrativa federal, e não existindo vedação, especialmente constitucional, para que independentemente de lei, canceda ou delegue a concessão de parcelamentos dos seus créditos, esta providência está afeita ao bom gerenciamento estatal.

Não há como negar que criar incentivos para o recebimento dos créditos, trata-se de procedimento elogiável e necessário em toda e qualquer administração que haja de forma responsável no gerenciamento da empresa ou instituição.

A propósito, quando fazíamos a revisão desta matéria, no dia 4 próximo passado, o Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, noticiava que o Governo de Minas Gerais estava recebendo os seus créditos tributários através de bens in natura, tal como móveis, cobertores, combustíveis, etc. Certamente que não há lei estadual autorizando esta modalidade de recebimento da dívida, porém, também não há irregularidade ou ilegalidade nesta neste procedimento, porque, como já dito, cabe ao bom administrador mensurar a forma melhor de incentivar o pagamento de seus créditos. Isto se chama gerenciamento público, que no caso do governo federal cabe ao Presidente da República a direção desta administração, independentemente de autorização de lei.

Não bastasse isso, a falta de previsão pela Lei nº 10.684/03, quanto a sua incidência também aos impostos estaduais e municipais, assim como relativamente às contribuições previdenciárias descontadas dos empregados, pode também ser invocada a previsão do art. 5.º, “caput”, primeira parte, da Constituição Federal, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, estando ai incluída a isonomia em matéria tributária, em todos os aspectos.

Para concluir definitivamente pela impossibilidade de tratamento diferenciado em matéria tributária, basta uma simples leitura do artigo 150, inciso II, da Constituição Federal. Verbis:

“Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontram em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;”

Veja-se que a nossa Constituição Federal veda, de forma expressa e inequivocadamente, a instituição de qualquer modalidade de tratamento desigual entre os contribuintes, cujo princípio deve ser aplicado para interpretação da lei em comento.

No caso em estudo, verifica-se uma pretensão de se dar tratamento diferenciado aos devedores de débitos de constribuições sociais descontadas de empregados e de outros tributos de origem estadual e municipal, ao argumento de que a Lei n.º 10.684/03 não prevê parcelamento desta modalidade de débito fiscal.

Entretanto, qual diferencial pode ser aferida entre um débito municipal, estadual, federal, dente este, a contribuição previdenciária? Não me parece haver diferenciação entre uma e outra modalidade de tributo.

Ademais, quem pode o mais pode o menos, como antes já dissemos, e como tal, se se pode parcelar tributo da União, pode-se também parcelar do INSS, Estadual e Municipal.

Diante deste quadro, todos aqueles que têm débitos tributários e tenham acordado, tácita ou expressamente, o seu parcelamento, ainda que seja apenas através do aceitação da opção pelo REFIS II, passam a ter direito aos benefícios penais contidos no artigo 9.º da lei em comento.

Por todas as razões atrás enfocadas, além de outras que podem ser invocadas, não restam dúvidas de que a Lei n.º 10.684/03, não impede a concessão de parcelamentos e respectivos benefícios nela previstos, para todas as espécies de tributos, incidindo a regra do artigo 9.º da citada lei, com toda a sua amplitude. Em próximo artigo abordaremos as conseqüências desta lei sobre a Lei do REFIS I, no aspecto penal, segundo a nossa ótica.

Jorge Vicente Silva

é Pós-graduado em Pedagogia em nível superior e Especialista em Direito Processual Penal pela PUC/PR, autor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, dentre eles, Tóxicos, análise da nova lei, Manual da Sentença Penal Condenatória. Todos os artigos deste autor no Site: jorgevicentesilva.com.br e E-mail:
jorgevicentesilva@jorgevicentesilval.com.br

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