Viagem no tempo pelos armazéns

Curitiba não esqueceu seus armazéns de “secos e molhados” e suas velhas lojas “têm-de-tudo”. Eles rarearam, quase desapareceram, substituídos por supermercados e hipermercados. Mesmo assim, alguns continuam nos mesmos lugares há décadas, oferecendo o que nenhuma grande rede oferece: memória, aconchego, humanidade e, é claro – artigos que você não encontra em nenhum outro lugar.

Você anda precisando de um arado? De tamancos de madeira para sua avó, que não desiste de cultivar a horta (e não se acostuma com outro tipo de calçado para o trabalho)? Talvez de uma “camisinha” para o chimarrão, ou de um chuveiro de campanha (um balde com um chuveiro acoplado e um gancho para pendurar)? De repente, quer apenas sentir o cheiro de um bom fumo de cachimbo ou comer um generoso pedaço de queijo da colônia ao lado dos amigos, com direito a azeite de oliva e uma boa cerveja? Nestes “armazéns-fósseis” você pode encontrar tudo isso – e, se quiser, ainda anotar a dívida no “caderno”.

Armazém do tempo

O exemplo mais perfeito de armazém de secos e molhados em Curitiba é o Armazém Santa Ana, no bairro de Uberaba. Para chegar não é difícil: basta seguir pela Avenida Salgado Filho, no sentido de Curitiba para São José dos Pinhais, até encontrar (do lado direito da pista) uma bela casa de madeira com telhadão e varanda. Não tem erro, mesmo porque o imóvel foi pintado de um insólito “laranja refrigerante”. De longe, olhando para varanda, você começa a perceber a diferença: lá estão expostos, como há 60 anos, bombas d?água de acionamento manual, gamelas de madeira, chapéus de palha, tamancos e ferramentas como enxadas, ancinhos e foices.

Estas ferramentas, explica o dono do armazém, Pedro Szpak, são um bom exemplo da diferença entre as suas mercadorias e as de outros estabelecimentos. “Aqui, o freguês vai encontrar a enxada ou a pá com o cabo, pronta para usar. Se vai ao supermercado ou à loja de ferragens, tem que comprar a cabeça da ferramenta e o cabo, e prender uma na outra para poder usar. Isso dá trabalho e nunca fica muito bom, principalmente para quem não tem experiência com o trabalho na roça.”

O armazém foi fundado em 1934 pelo pai de “seu” Pedro, Paulo Szpak, um ucraniano que casou com uma filha de poloneses e foi se instalar no remoto Uberaba, lugar próximo da antiga Colônia Afonso Pena. “Os laticínios e os embutidos como salsichões eram daqui mesmo, da nossa propriedade ou das chácaras dos colonos”, lembra Pedro, um economista formado pela Universidade Federal do Paraná que desde menino trafega pelo chão de tábua corrida do armazém.

Para atrair compradores, a loja também vendia ferramentas, acessórios para a lida no campo como alpargatas, botas e chapéus de palha, fumo, brinquedos e até relógios e rádios. Para quem quisesse, o armazém também servia generosos sanduíches de broa de centeio com queijo acompanhados de vinho, café, gasosa “gengibirra” ou capilé.

Na porta, imunes ao processo civilizatório, estão salames e salsichões (entre eles os fantásticos bockwürsts alemães); no balcão, queijos fantásticos, mel, compotas de frutas e doce de leite em cubos.

Um apaixonado pelo lugar é Romão Knapk, militar aposentado de 66 anos que há muito freqüenta a casa. Ele diz gostar de tudo, mas tem uma predileção: as broas de centeio feitas segundo a antiga receita polonesa. “Não troco este gosto pelo de outros pães”, afirma.

Os produtos, que antes vinham de mais perto, hoje são trazidos de colônias de Santa Catarina e do interior do Paraná. As ferramentas e demais utensílios – como berrantes e chuveiros de campanha – podem chegar de mais longe. No caso dos alimentos, o controle de qualidade vai além da vigilância sanitária estatal. Para garantir a venda de bons produtos, a família usa o que apelidou de “controle de qualidade humano” – ou seja, só revende depois de conhecer o lugar de origem e, é claro, provar. “Aqui é assim: só vendemos produtos bons. Se a qualidade cai, paramos de comprar.”

No caso de alguns tipos de queijo, a própria família se encarrega do preparo final – eles são comprados “verdes” (isto é, apenas meio curados) e, de acordo com o sabor pretendido, devidamente trabalhados. Isso faz com que, lá, seja possível encontrar queijos muito semelhantes aos produzidos nas colônias ou mesmo nas áreas rurais da Europa.

Cachimbos

No Centro da cidade está outra “loja arquétipo” dos velhos e bons tempos em que as compras não eram pagas com cartão de banco. É a Charutaria Liberty, uma cutelaria fundada em 1935 por Miroslau Florecki, um imigrante que apostou na demanda de fumo, artigos para chimarrão, ferramentas domésticas e de jardim, fogões à lenha e de centenas de outros artigos de que, algum dia, alguém necessitou. Em quase 70 anos a loja já passou por cinco endereços – Praça Tiradentes, Rua do Rosário, Alfredo Bufren, Saldanha Marinho e Trajano Reis – mas manteve o mesmo princípio: ser um lugar onde é possível encontrar praticamente de tudo.

Alexandre Florecki, neto do fundador e atual proprietário da loja, conta que, ao longo do tempo, houve mudanças na linha de produtos. Nos primeiros tempos, o proprietário Miroslau apostou em miudezas importadas, artigos que eram o sonho de senhores, senhoras e crianças da cidade. A loja também chegou a vender armas, pólvora e munição. Além disso, outro produto tinha muita força: “No início, o carro-chefe eram os artigos ligados ao fumo, e meu avô chegou, mesmo, a ter uma fábrica de cachimbos, a ‘1945’. Com as campanhas anti-tabagistas, optamos por reduzir a oferta destes produtos e investir mais em outras linhas, como, por exemplo, a de ferramentas e peças para jardim”, explica.

Mesmo com a redução nos investimentos na área de fumo, na Liberty ainda é possível encontrar alguns cachimbos importados de primeira linha, cachimbos nacionais com piteira de chifre, bolsas para guardá-los, limpadores, fumos e isqueiros – e por preços muito menores que os das sofisticadas “pipe shops”.

Você quer comprar um fogão a lenha feito sob medida, decorado com motivos florais pintados à mão, parecido com o que sua avó ou bisavó usava? Provavelmente, só vai encontrá-lo na Charutaria Liberty. A loja se especializou, nos últimos anos, em vender este tipo de artigo. Segundo Alexandre Florecki, há uma procura cada vez maior por fogões à lenha e estufas em ferro fundido. No caso das estufas, elas são produzidas nos mesmos moldes do início do século XX, pesadas – algumas chegam a 150 quilos – e muito detalhadas.

“As pessoas das classes média e alta estão resgatando a velha prática de fazer fogo e se aquecer à beira do fogão, com um bule de café ou uma chaleira de chimarrão sobre a chapa”, observa. Recentemente, conta, foi chamado à casa de um grande empresário para instalar uma estufa em ferro fundido. Dentro desta mesma tendência está a redescoberta de bancos em jardim feitos em ferro fundido e madeira. São peças semelhantes aos bancos de praça, espaçosas e resistentes.

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