Realidade brasileira atropela sonho curitibano

O sonho dourado de Curitiba ser uma cidade de primeiro mundo foi atropelado pela realidade brasileira. Se um dia foi, já não é mais. E se a cidade era apresentada a todo o Brasil como um exemplo, seria conveniente conferir a reportagem que o jornalista e escritor José Castello fez para o site No Mínimo, do portal ibest.com.br. Castello há anos mora em Curitiba e recorda como a visão de cidade de primeiro mundo foi habilmente construída, em parte com intervenções urbanas e, em parte, com muita publicidade. Os arquitetos dessa construção se vinculam ao grupo político do ex-governador Jaime Lerner, dominante na cena curitibana por um período de três décadas.

Para quem mora em Curitiba e convive diariamente com os fenômenos sociais que Castello aponta – favelas, traficantes, roubos de carro, violência, gangues urbanas, entre outros – não chega a ser uma novidade a correção de cidade modelo para uma metrópole brasileira, não muito diferente das outras. O espanto, certamente, deve recair sobre o resto do Brasil, entorpecido durante anos e até décadas com a propaganda de a cidade paranaense ser um paraíso ecológico. O nome da reportagem, aliás, é justamente este: “O paraíso não é mais aqui”.

Mais que um título, quase um esclarecimento, recheado de informações.

Vendendo uma imagem

“Nos últimos anos, nenhuma outra cidade brasileira teve seu nome tão intensamente associado à ordem e à felicidade urbanas como Curitiba”, diz a reportagem. “Ninguém pode negar que, no caótico cenário das metrópoles brasileiras, inchadas, desorganizadas e violentas, Curitiba ainda é uma importante exceção. Com cerca de 1,6 milhão de habitantes, dos quais 84,38% são brancos e apenas 11% pardos, o que destoa e até surpreende no cenário mestiço brasileiro, tornou-se uma capital recheada de parques e de áreas verdes, com um traçado urbano racional.” José Castello observa que “essa ainda é a imagem que dela se continua a vender”.

Ele recorda a longa Era Lerner, que durou mais de três décadas. Nesse período, “uma profusão de imagens publicitárias, divulgadas nos quatro cantos brasileiros, passou a vender a idéia de uma Curitiba paradisíaca. Como resultado, a capital foi transformada pelo marketing, da noite para o dia, numa espécie de éden urbano, a cidade perfeita, uma espécie de Shangri-lá tropical, e passou a seduzir aqueles que, longe dela, aspiravam a uma vida melhor. Uma grande exceção, diz-se, no cenário conturbado das cidades brasileiras”.

E a conseqüência foi atrair um número crescente de pessoas em busca do paraíso que acreditavam ter encontrado. Castello critica Lerner e sua equipe. “Em vez de trabalhar em silêncio, a equipe de Lerner encantada com sua própria obra se dedicou a vender pelos quatro cantos do País sua cidade-modelo. Houve, desde então, um incalculável investimento em publicidade para impor ao Brasil a visão de Curitiba como uma capital perfeita. O investimento na difusão dessa imagem, afora os ganhos políticos que trouxe para o grupo dominante, minou aos poucos o projeto inicial, levando a capital paranaense, rapidamente, a inchar e, logo, a sair do controle de seus administradores”, diz José Castello.

E a conseqüência foi que, “frustrando as promessas de perfeição e felicidade, uma grande leva de migrantes, vindos, sobretudo, do interior do Estado, aqui chegou atraída pela idéia de um novo Eldorado. Ela trouxe consigo, na verdade, não só um punhado de sonhos irreais, mas uma herança de miséria. Em seu rastro, vieram as favelas, a marginalidade e o narcotráfico, que não são uma exclusividade de Curitiba, é claro, mas que aqui proliferam como em qualquer outra capital brasileira”.

E, apesar das intervenções urbanas, do marketing e da publicidade, a capital paranaense não deixou de fazer parte do Brasil real, ficando sujeita às marés instáveis da política e da economia do País. “Iludidos com a lenda de que vivem numa capital do primeiro mundo, muitos esquecem que Curitiba, apesar de fincada a 900 metros de altitude, numa região de clima temperado e de farta vegetação, está a apenas 450 quilômetros de São Paulo, e em pleno coração brasileiro”, diz a reportagem.

A realidade se encarregou de demonstrar que a imagem da cidade paranaense que se divulgava Brasil e mundo afora poderia até conter verdades, mas ocultava muitas outras verdades. “Números, e não exercícios de retórica, ajudam a traçar a face dessa dura realidade. O narcotráfico, por exemplo, se infiltrou no paraíso. Basta dizer que a droga apreendida pela Policia Federal nos primeiros 42 dias de 2004 se igualou àquela retida pela mesma polícia ao longo de todo o ano de 2003! Foram, entre outros estoques, 5,7 toneladas de maconha e 4.235 bolinhas de haxixe. Enquanto isso, a polícia estima que o narcotráfico controla, hoje, favelas em pelo menos dez bairros da capital.” E isto não é coisa que se possa dizer que seja normal em nenhum paraíso.

Tiroteios, gangues e favelas

As cenas de violência e tiroteios nas favelas cariocas, vistas no noticiário da TV e que assustam a classe média curitibana, encontram semelhanças na capital paranaense. Basta apenas desligar a TV e comparar os números. “Estatísticas indicam que, atualmente, cerca de 200 mil famílias vivem em condições absolutamente precárias nas cerca de 800 ocupações irregulares da cidade, que formam, oficialmente, 112 favelas. O que significa dizer, cerca de metade das favelas oficialmente reconhecidas em todo o Estado. Nada menos de 10,57% dos 542 mil domicílios da cidade-modelo, mostram dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), estão em favelas que, crescendo na direção ao leste, já ameaçam invadir as encostas ainda magníficas da Serra do Mar”, constata José Castello em sua reportagem.

Não bastasse isso, “multiplicaram-se também as gangues de rua, hoje estimadas, pela polícia, em cerca de 250. Gangues de jovens, muitos deles ainda adolescentes, que se ligam a pequenas atividades associadas ao narcotráfico ou se entregam à simples e absurda vontade de perturbar, destruir e depredar, em particular alguns dos símbolos da capital, como as famosas estações-tubo que servem aos ônibus expressos”.

Para se ter uma idéia do nível de violência dessas gangues, basta dizer que no fim do ano passado a polícia prendeu no bairro do Cajuru, bairro com doze favelas, uma gangue armada até com escopetas. A violência que o jornalista revela em sua reportagem está se alastrando. “Dados de 2001 indicavam que 45,5% dos habitantes da cidade já foram vítimas de algum tipo de assalto. Além do mais, o Paraná é o quinto estado brasileiro com o maior número de roubos de automóveis, bastando lembrar que, apesar da migração cada vez mais intensa do interior rumo à capital, 140 dos 399 municípios do Paraná já têm favelas.”

Ippuc diz que bairros se desenvolvem

Números do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) mostram que, nos últimos dez anos, os bairros mais afastados do centro de Curitiba estão se desenvolvendo com velocidade constante, criando uma estrutura digna de uma cidade de médio ou grande porte. Com crescimento de estabelecimentos comerciais, indústrias, planejamento habitacional e densidade populacional elevada, bairros como Boqueirão e Cidade Industrial mostram que está cada vez mais desnecessário um morador desses locais ter que se deslocar até o centro de Curitiba para obter serviços essenciais, como acontecia com freqüência há duas décadas atrás.

Juntos, esses dois bairros apresentam hoje uma população de aproximadamente 500 mil habitantes. São mais de 160 equipamentos urbanos (creches, escolas, sacolões, feiras, cemitérios, igrejas e outros serviços desenvolvidos pela Prefeitura) funcionando nas duas regiões. Segundo um levantamento de 2002 do Ippuc, os dois bairros eram responsáveis por cerca de 10,33% de todo os estabelecimentos comerciais da cidade. Segundo o Ippuc, esse número deve ter aumentado significativamente no último ano.

Grande parte desse desenvolvimento se deve à criação das regionais administrativas da Prefeitura de Curitiba. Nos anos 90, teve início o processo de descentralização administrativa da Prefeitura e foram criadas as unidades regionais de administração. Logo em seguida, foram instaladas as ruas da cidadania, criando assim uma marca da região. Hoje funcionam dez administrações regionais. Cada uma atende às populações das regiões.

Lourival Peyerl, coordenador do Banco de Dados do Ippuc, afirma que todas as transformações que vêm ocorrendo nos bairros, acelerando o desenvolvimento da cidade, faz parte do planejamento estipulado pelo Plano Diretor. “A cidade está crescendo e novas iniciativas estão sendo criadas para absorver toda a demanda populacional que está ocorrendo. Com as regionais, as administrações se tornam mais eficazes, reduzindo a necessidade de se localizar todo o procedimento em um só local”, diz.

Ele explica que a densidade populacional é o fator decisivo para que todas as decisões sejam tomadas com relação ao desenvolvimento e prosseguimento do Plano Diretor de Curitiba. Conforme o fluxo populacional se encaminha para determinado bairro, as diretrizes de desenvolvimento seguem o mesmo caminho.

É o caso da Cidade Industrial de Curitiba (CIC), que com as empresas se fixando no local, foi o chamariz para uma grande quantidade de pessoas procurando por emprego. Segundo o coordenador regional do Portão, que administra a CIC, Paulo Roberto Sochaer, as empresas foram o ponto principal do desenvolvimento do bairro mais populoso de Curitiba. “Foi sem dúvida um passo fundamental para o desenvolvimento. Com as empresas, vieram as pessoas em busca de emprego. Com o aumento da população, veio o comércio e a necessidade de implantação dos equipamentos sociais. É um ciclo que não tem fim”, diz.

Estatística

Números da Regional Portão confirmam que somente na Rua da Cidadania da região foi realizado 1,4 milhão de atendimentos à população, no último ano. Grande parte desses atendimentos foram voltados para a população da CIC, mostrando como o bairro se desenvolveu assustadoramente.

No Boqueirão, o desenvolvimento do comércio foi estrondoso, especialmente nas principais ruas do bairro, entre elas a Avenida Marechal Floriano Peixoto. De acordo com o administrador da Regional Boqueirão, Paulo Sondal, o crescimento populacional da região foi enorme e, com isso, o aparecimento de novos estabelecimentos comerciais foi um processo normal. A questão da saúde e da moradia também foi levantada pelo administrador. Segundo ele, o atendimento realizado nas 13 unidades de saúde do bairro consegue atender a grande demanda de pacientes, apesar das reclamações que chegam até a regional. “O Boqueirão é praticamente uma cidade. Com todos os problemas e qualidades, é um número muito grande de pessoas, mas estão tentando resolver essa questão”, explica Paulo.

Sobre as moradias, ele destacou um trabalho que está sendo feito para retirar os moradores de baixa renda de ocupações irregulares. Paulo conta que novos terrenos estão sendo disponibilizados para que essas famílias saiam de áreas de risco. “É um trabalho conjunto e que está dando certo. Tudo isso faz com que o bairro se desenvolva e se destaque dentro de Curitiba”, completa. (Rubens Chueire Júnior)

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