PM fã de Poe mostra talento na literatura

Durante o dia ele é um capitão que acabou de ser promovido a major, lotado no quartel general da corporação, numa função burocrática no Fundo de Atendimento à Saúde da Polícia Militar do Paraná. À noite ele se transforma num escritor de histórias fantásticas, temperando gêneros de horror, suspense e policial. Até aí, pouca novidade: a noite esconde milhares de escritores desconhecidos, a maioria nunca publicada.

Mas se o policial militar curitibano Waldick Alan de Almeida Garrett, ou apenas Waldick Garrett, não é uma vedete da literatura nacional, também não pode ser considerado anônimo ou ilustre desconhecido. Ele não vende milhões ou milhares de exemplares, mas desde 2005 constrói uma carreira discreta, porém sólida em suas etapas. A começar pelo fato de que Waldick Garrett aos 39 anos já publicou três livros – A Sete Palmos, de 2005; Manuscritos de Sangue, de 2006 e 3:33, há dois meses – e por editoras em ascensão como é o caso da Novo Século e a Draco. E um novo livro está sendo preparado, provavelmente para sair pela Novo Século.

Além disso, ele mantém um site (http://www.waldickgarrett.com.br/web/) de apoio com informações sobre sua carreira e seus livros são vendidos em versões digitais pelas prestigiadas livrarias cibernéticas Amazon e Apple. Ele age como profissional. E dos bons. As edições impressas sempre em torno de 2 mil exemplares não encalharam e ele garante que só tem um exemplar do último livro (3:33), porque o resto foi vendido. Se tudo isto não transforma ninguém num fenômeno editorial, pelo menos é o suficiente para revelar o perfil de alguém que decidiu levar de forma sólida sua carreira de escritor.

Canetas & vinhos

Os três livros de Garrett reúnem novelas do gênero fantástico. “Evito o trash. As minhas histórias seguem mais a tradição do horror e policial clássico”, diz Garrett, um fã assumido de Edgar Allan Poe e Stephen King. A sua paixão por Allan Poe o levou a visitar no ano passado a casa do escritor americano em Baltimore e a comprar no mercado livre uma caneta da edição limitada em torno de 12 mil peças numeradas que a Mont Blanc fez em 1998 para homenagear o escritor americano. Caneta que hoje ninguém vende por menos de R$ 2,3 mil.

Se na influência literária ele cai para o lado do americano Allan Poe, curiosamente no lado familiar o curitibano afirma ser descendente do escritor português João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854), uma das figuras de proa do romantismo em Portugal. “Quem descobriu isso foi um tio meu, o coronel Aristides Garrett do Prado, que pertenceu à administração do então governador José Richa nos anos 80”, diz ele.

“Um dia, na Bienal do Livro de 2006, uma senhora de nome Garrett se aproximou de mim e disse que éramos parentes”, diz ele. Esta mulher era do ramo familiar dos Garrett no Brasil – uma parte ficou em Portugal e outra emigrou para o Brasil – e tinha uma representação em São Paulo dos vinhos Garrett, feitos na região da Beira e considerados de boa qualidade, com castas portuguesas e outras misturadas francesas e portuguesas.

E assim, Waldick passou a divulgar os vinhos Garrett e por conta de seu interesse no assunto ele foi eleito presidente da seção paranaense da Associação Brasileira de Sommelier, entre 2008-2010.

“A literatura é uma válvula de escape”

Embora começasse a escrever ficção relativamente tarde, a literatura entrou na vida de Waldick Garrett muito cedo, como ocorre com a maioria das pessoas, através da leitura. “Eu comecei ainda criança lendo os livros da Coleção Vagalume. Aos doze anos li Drácula. Depois vieram Allan Poe, Stephen King e os outros”, diz ele. Embora hoje esteja envolvido com a literatura que classifica de fantástica, o esc,ritor fez sua primeira investida publicando um livro jurídico editado pela Juruá – além de formado pela Escola de Oficiais da Polícia Militar do Paraná, ele também é graduado em Direito pela PUC-PR.

A estréia na ficção ocorreu em 2005 quando escreveu o conto O Canto Esquerdo, selecionado por um site da internet como um dos dez melhores do gênero naquele ano. Waldick se animou, escreveu outros contos e assim tinha o seu livro A Sete Palmos. “Eu consultei três editoras, para saber se estavam interessadas na publicação: Record, Ediouro e Novo Século. Esta última se interessou e publicou”, diz ele. Os dois livros seguintes foram conseqüências do primeiro.

No último livro, 3:33, lançado há dois meses, todas as histórias gravitam em torno desde horário, cujos números representam graficamente a metade do fatídico 666, o número da Besta do Apocalipse. Garrett diz que não pensou nisso quando começou a escrever seus contos, tendo estes números como referência, mas apenas num horário da madrugada em que coisas estranhas aconteceriam. Um horário em que ele disse que levanta para escrever.

Para Waldick Garrett, a literatura representa uma porta de fuga dos problemas cotidianos, é uma atividade prazerosa, uma definição que certamente seria compartilhada por Stephen King, autor que o curitibano admira. “A literatura me dá um momento de prazer, é uma válvula de escape”.

Trecho final do conto ‘A Entrega’

“Dois pontos luminosos rebrilharam.

– Jesus! O que é isso? – indagou, contorcendo a feição.

Lucas não vira o que se movimentara na escuridão quase total do banco traseiro, mas jurava que a dimensão daquela silhueta não condizia com o tamanho do baú.

Um som célere e sibilante anunciou o início de um incêndio.

Suas forças haviam chegado ao limite. Permaneceu ofegante, inerte, corpo dormente.

A silhueta rastejara para fora como um animal ferido. Ao passar pelo vão da porta lateral e o asfalto, notou que o ser havia crescido ainda mais, um corpo coberto de pêlos e um ronronar agora gutural. Lucas vira pouco, só partes de suas largas costas, mas algo o fazia crer que aquele ser não estava ferido, mas renascendo, revitalizando-se.

Um arrepio doentio percorreu-lhe o corpo enquanto a criatura afastava-se do veículo, sumindo pela noite adentro, assim como o trem das vinte e duas horas.

Lucas permaneceu ali, preso pelo cinto, aturdido e sem forças, proferindo rezas antigas.

Inesperadamente, uma visão de trevas inundou seus olhos. Seres diabólicos invadindo o plano terrestre, desastres e mortes brutais… um período glacial nefasto havia começado… nevascas e sofrimentos. Talvez aquele baú fosse a solução. Talvez aquele ser fosse o responsável por aquela alteração repentina do clima. Talvez o destinatário da entrega tivesse a solução para o caos que se instalava e soubesse como mandar a criatura de volta ao seu habitat natural.

Ao compreender seu imperdoável erro, que resultara na soltura de algo surreal, inimaginável, o que jamais poderia ter sido permitido, o frio da noite foi aquecido por uma lufada fulminante de chamas e um estrondo mortal”.