Médica Luci Pfeiffer fala sobre violência contra as crianças

Mais de 90% dos casos de violência contra crianças acontecem dentro de casa. É o que afirma a médica pediatra Luci Pfeiffer, que concedeu entrevista para O Estado. Ela coordena programas de prevenção, como a Rede de Proteção às Crianças e aos Adolescentes em Situação de Risco para Violência. Pfeiffer afirma que por trás dos maus-tratos estão pais irresponsáveis e despreparados. Quando esse abuso vem de fora de casa, é a negligência dos responsáveis que coloca a criança em risco. Ela afirma, também, que existe omissão do poder público.

O Estado – O que falta para garantir proteção às crianças de hoje?

Luci Pfeiffer – É dever absoluto dos pais cuidar, proteger e nunca maltratar os filhos. Se nós falarmos dos crimes de fora de casa – os abusos sexuais, os estupros, mesmo a violência urbana – o que falta é esses pais ficarem mais atentos. Dar proteção, acompanhar, saber aonde a criança vai, com quem está. Hoje, nós temos crianças que saem de manhã de casa e só voltam a ver seus pais no fim da noite. Tem gente que acha que shopping é um lugar seguro e nem sempre é. Quantas crianças ficam horas na internet, em salas de bate-papo, fazendo amizade com pessoas virtuais, sem saber quem está do outro lado, sem que os pais não tenham a mínima idéia de com quem os filhos estão conversando? A maior proteção é quando se está por perto.

OE – O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei n.º 8.069/90) veio exatamente para diminuir esses riscos. Isso ocorreu?

LP – Pelo artigo 245 do ECA, os profissionais da saúde e da educação têm o dever de notificar qualquer suspeita de violência à infância ou adolescência. Esse é um fator fundamental. A partir da suspeita, avaliar e acompanhar essa família que pode ser doente. O problema é que a violência que acontece entre quatro paredes fica no domínio do lar família e aí não se tem acesso à lei.

OE – Como o pedófilo atrai a criança?

LP – O abusador de dentro de casa começa um processo de sedução dessa criança, que não vê nada de erótico nisso. Ela vê, sim, um adulto que finalmente dá atenção para ela. E isso para a criança é bom, então ela aceita os convites e, quando ela percebe, está envolvida em jogos sexuais que ela nem consegue entender. Até ela perceber que aquilo não é certo, leva um tempo. Por isso, tem que existir a interferência de uma outra pessoa. Com a notificação, essa criança e toda a família, poderão ser tratadas.

OE – Qual é o perfil do pedófilo?

LP – Normalmente, ele é impotente para ter relações com uma pessoa adulta e por isso precisa da fragilidade e inocência da criança. Ele precisa exercer seu poder sobre aquele ser indefeso. O corpo sem curvas, sem pêlos e a voz fina o atraem. As características de infância chamam a atenção desse pedófilo. Ele procura sua vítima naquela criança mais abandonada, mais carente.

OE – Eles têm um método para abordar a vítima?

LP – Se ele é conhecido, tem essa visão da criança que é mais negligenciada, que não é tão supervisionada, é mais carente. Eles escolhem um tipo físico, uma faixa etária para abordar sexualmente. Eles se aproximam, fazem uma relação de amizade. Começam com conversas eróticas e mostram filmes pornográficos, até que acontece o abuso sexual.

OE – É difícil para a criança contar o que aconteceu?

LP – Os abusadores convencem as crianças que elas quiseram, que elas provocaram. As crian&,ccedil;as assumem essa culpa e não denunciam. A criança não consegue se desvencilhar, pois ele ameaça sumir com ela e matar os pais dela, se ela contar.

OE – Por que às vezes a mãe culpa a criança pelo abuso?

LP – É muito fácil a gente pôr a culpa naquele que não pode se defender. Às vezes, a mãe é tão perversa quanto o abusador e faz de conta que não vê. E ainda tem gozo naquilo que ela sabe que o parceiro faz com seu filho ou sua filha. Quando a criança conta, ela diz que é mentira. Não acredita e passa a maltratar a criança da mesma forma. O que se sabe das relações incestuosas – entre membros da mesma família ou com quem deveria proteger – é que elas são denunciadas quando existe a ruptura. Quando essa mulher percebe que seu companheiro está interessado em outra, ela denuncia.

OE – Como se pode identificar, no comportamento da criança, indícios de abuso?

LP – A criança sempre conta, do jeito dela. Ela vai dar sinais de sofrimento psicológico, que são as alterações de comportamento. Ela reage com agressividade, apatia, hiperatividade, distúrbios do sono ou déficit de atenção, já que o foco dela está deslocado para a situação de violência. Outro sinal é a criança fazer xixi na cama ou evacuar na calça, mesmo depois de já ter controlado os esfíncteres.

OE – Quais são as atitudes preventivas para os pais?

LP – Os pais têm que supervisionar a internet, por que hoje é muito comum a marcação de encontro por essa via. O computador deve estar no meio da sala e não escondido num cantinho da casa, onde só a criança o acessa. Os pais devem falar com as crianças sobre os riscos, acompanhar os passos, saber onde e com quem elas estão.

OE – A que tipo de pessoas os pais devem estar atentos?

LP – Desconfiar sempre que a criança trouxer presentes para dentro de casa. Estranhar quando ela conhece um tio muito legal ou uma tia muito boazinha que começa a fazer favores. Observar sempre que ela quiser estar em companhia só de um adulto. Mesmo que seja um adulto do relacionamento da família, ele sempre quer ter uma criança sozinha com ele. Escolhe uma que é a princesa dele, que é a especial, aquela que ele quer de companhia, longe do olhar dos outros adultos. O pedófilo procura empregos em que ele fica em contato com crianças.

OE – Qual deve ser a ação preventiva do Estado nesses casos?

LP – Começa no planejamento familiar. A criança mais agredida é aquela que não tem lugar, ou porque nasceu na hora errada, ou no casal errado. Aquela criança é considerada culpada pelos fracassos dos pais. O dever do governo é o de capacitar os profissionais a identificar precocemente os sinais de maus tratos. O governo deve capacitar pessoas para acompanhar essas famílias. Equipes com um médico, um psicólogo, um pediatra ou um psicanalista que entenda do quadro que a criança está apresentando.

OE – A senhora acha que há omissão do poder público?

LP – Acho sim. Hoje nossas leis são fracas no sentido de proteção. Eu faço a notificação como médica e o processo vai parar pelo afogamento dessa Justiça que não tem apoio. Não temos delegacias, juízes, nem promotores suficientes. Temos o Nucria (O Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente), que é a delegacia da criança. É uma em Curitiba e são três no Estado. E as outras cidades? Por que as delegacias não se transformam em delegacias do adulto e da criança?

OE – Que órgãos públicos as pessoas devem procurar para fazer a denúncia?

LP – Existe o telefone 156 em Curitiba, o 186 no Paraná e o 100 é o nacional. Para denunciar, as pessoas devem procurar o Conselho Tutelar, na Rua da Cidadania de cada bairro. Em Curitiba, a denúncia também pode ser feita em qualquer escola pública, em qualquer unidade de saúde a um representante da Rede de Proteção. Em outras cidades, é o Conselho Tutelar que po,ssui profissionais contratados para a proteção da criança. A notificação pode ser anônima e ela não significa a prisão de todo mundo, mas um sinal para avaliar aquela família.

OE – Quais as conseqüências do abuso na vida da criança?

LP – Se a criança não é atendida, ela passa para a delinqüência e destrói coisas. Daí vem o uso de drogas, do álcool e a promiscuidade. A partir disso, ela destrói a si mesma e, depois do fracasso escolar, torna-se um adolescente sem metas.

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