Gostar de viver, receita que vem da experiência

A rotina de Ângelo Mario Marchi, 82 anos, empresário, é agitada. Ele trabalha na agência dos Correios da Vicente Machado, quase esquina com a Rua Visconde de Nácar, na capital, e seu dia voa, enquanto ele supervisiona o andamento dos serviços. A conversa com Marchi, inclusive, foi interrompida várias vezes para que ele atendesse ao telefone, mas nem isso, nem o pequeno espaço da sala foi empecilho para uma hora de bom bate-papo.

Que qualidade de vida que nada! A cada tentativa que Marchi falasse sobre sua receita de viver bem, ele definitivamente não estava interessado. Ele queria mais é dar detalhes sobre a colonização no século XV, sobre o efeito das Sete Missões no perfil do gaúcho, sobre seu amor pela terra e os tempos de agricultor, sobre seu espírito aventureiro de viajar Brasil latitudes afora e ditar, na ponta da língua, os 720 km de extensão do Acre e seus 155 mil km2 de área total. Assim, a hora voou, com muita história e lucidez de sobra.

E isso por quê? Justamente pelo assunto em questão: vida de qualidade. Que se traduz, no caso de Marchi, em uma aguçada curiosidade, um sentido tão desenvolvido, que lhe faz ouvir o neto chegar da escola, no ambiente contíguo, por um som quase imperceptível a qualquer jovem de boa acuidade. A sintonia de Marchi com a vida, os vários copos de água por dia, o tênis confortável para o trabalho externo, a leitura diária, enfim, toda a sua estrutura de vida minimiza os problemas que, apesar da boa forma, o corpo vai apresentando.

Vontade de viver

Qualidade é sede de vida. É isso que faz com que não se desista de viver bem, mesmo com o corpo e seus ditados. Arlete de Mattos Kraft, 83 anos, dona de casa e moradora do Bom Retiro, sente saudades do tempo em que pegava o ônibus para o centro, sem ajuda de ninguém. Mas adora viver sozinha. Cuida da casa, lê, vê novela, mas ultimamente a idade tem lhe impingido cuidados. Mesmo assim, ela dribla os percalços com bom humor. Levanta às 8h, faz e toma com prazer o seu café, deita novamente, vê os noticiários da TV e ?frui? cada parte do dia com intensidade. A família do filho, que mora na casa ao lado, dá-lhe a devida ajuda, apesar de não lhe agradar em nada. Mas, mesmo em uma fase de semi-independência, Arlete não perde o franco sorriso, nem a feição doce e suave.

Independência

Em outro ponto da Grande Curitiba, no alto de um 18.º andar da Rua Visconde de Rio Branco, vive sozinha Mary Castanho di Lascio, 82 anos, professora aposentada. Uma empregada a ajuda, mas só durante o dia. Os filhos dão sempre uma passada, e a família enche a casa no Natal e nas grandes datas. Ao falar, Mary não esconde a tristeza pelo marido que se foi há quatro anos. A mesa de bilhar que ele adorava é destaque na imensa sala ensolarada. Mas a tonalidade melancólica se dissipa quando Mary assume a postura altiva e fala de si enquanto mãe, avó e matriarca. Para gerir sua independência, Mary é disciplinada, faz hidroginástica duas manhãs por semana e, religiosamente, anda uma hora por dia. Adora ver gente na rua, roupas e calçados à venda, e não falta à missa; se não vai às 7 da manhã, vai ao final do dia. Mary é vaidosa. Nas aulas de hidro, ela é conhecida como “a mulher dos creminhos”.

Realização verdadeira

O que essas três pessoas têm em comum? Provavelmente, suas escolhas de vida. O caminho trilhado com gosto, a parcimônia e paciência para deixar passar o sofrimento que é da vida de todo mundo, e, principalmente, vontade de viver com plenitude como forma de agradecimento por ter chegado a essa altura da vida com dignidade. A terapeuta junguiana Kátia Voigt fala que essa longevidade saudável é resultado de “a pessoa ter se realizado na vida, de não ter respondido apenas à demanda externa, mas a algo que a supre internamente, e isso ultrapassa conceitos de ter que ser isso ou aquilo”.

Segundo Kátia, “essa é hora de se fazer o que gosta, viajar, contar histórias, se relacionar”. Por exemplo, a ânsia de Marchi em ter de estar sempre trabalhando, pode ser uma fuga. Como diz ele, “não posso parar, senão adoeço”, mas é uma fuga louvável, pois ele está fazendo o que o seu corpo precisa. Mary usufrui a sua disciplina física, o gosto por ajudar os filhos, por passear e rezar. Arlete gosta de ficar sossegada no seu canto. Às vezes tenta limpar a casa, mas sabe que não pode mais, o que não lhe soa tão traumático, apenas como oportunidade de procurar outros interesses e se adaptar.

O importante é beber da vida, embriagar-se, deixar as dores e dissabores de lado, divertir-se como gosta, ter leveza e não esquentar a cabeça. Contar suas melhores histórias e se emocionar, como quando Marchi se lembrou do dia em que atravessava o Rio Araguaia em um barco e reparou que, enquanto muitos patos selvagens voaram, só um ficou parado na água. Aquilo lhe chamou a atenção. Ao passar bem perto, viu que era uma pata e embaixo dela estavam escondidos todos os patinhos que, juntos com a mãe, imediatamente mergulharam na água. Depois que o barco passou, toda a família unida emergiu novamente. Ao contar essa singela passagem, Marchi encheu os olhos de lágrimas.

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