“Se você precisar de corte de cabelo em janeiro, a Marlene e o Mozar estarão aí”, disse o Seu Raul, enquanto dava um corte nos meus grisalhos. Perguntei se ia viajar e ele respondeu num tom meio melancólico: – Vou me aposentar!
A frase trouxe certo desapontamento. Afinal, 21 anos ouvindo a frase: “Aquele nosso corte tradicional, não é?”. Respondia que sim. Certos cabelos como o meu só ajeitam de uma forma: máquina 2 em volta, tesoura para abaixar o topo, outra tesoura de desfiar e, zás!: lá estou eu com a cara de sempre.
No Nova York Cabeleireiros, na galeria do edifício Asa, é assim. O rádio quase sempre está sintonizado numa destas FMs que tocam música para quem tem mais de 30. E as conversas com o Seo Raul correm num tom ameno.
“O salão muitas vezes vira um local de desabafo do cliente, que acaba externando problemas no trabalho e até dramas pessoais. Mas as alegrias também são divididas. O mais comum é quando os filhos passam no vestibular ou se formam”, revela.
Raul Hilgenstieler, nome de nascimento que por sinal poucos conhecem, hesitou um pouco quando lhe propus contar a sua saga, uma “pequena” jornada de 40 anos de profissão completados em 2012, que culminou com sua aposentadoria. Além das décadas esgrimindo pentes e tesouras com uma destreza de poucos, teve ainda sete anos em que militou na alfaiataria. “Eu te conto a história e aí você dá uma floreada”, disse.
Seo Raul, como os clientes-amigos costumam chamá-lo é natural de São Bento do Sul (SC), mas se criou em Mafra, com os pais e mais três irmãos. A profissão veio por atavismo, já que o pai, Francisco Hilgenstieler, descendente de dinamarqueses, era barbeiro. Era um bico, já que não podia ganhar a vida só com o ofício naquela época. A máquina era manual, “mascava” um pouco o cabelo na hora de cortar, o que trazia certo desconforto.
Catorze anos sem férias
E agora?, perguntei. – Quais são os seus planos? Seo Raul não pensa em voltar para os Estados Unidos, país que tanto marcou a sua vida. Hoje ele ainda mantém raízes lá, já que sua filha mora em Chicago, terra do presidente Barack Obama. “O momento é de descansar, já que trabalhava de segunda a sábado e sempre em pé. Fiquei 14 anos sem tirar férias, de 1980 a 1994. Agora quero aproveitar a aposentadoria”.
Quando pergunto, com quem ele pretende cortar o cabelo de agora em diante, ele responde sem pestanejar: “No Nova York Cabeleireiros”, afinal os fiéis escudeiros Marlene e Mozart continuam por lá.
Em 40 anos, 100 mil cortes
Ao longo das quatro décadas de trabalho, Seo Raul calcula que cortou em torno de 100 mil cabeleiras de todos os tipos e matizes. Mas o que mais se orgulha é do círculo de amizade que formou ao longo dos anos.
“O salão é um espaço democrático: corta-se cabelo de desembargadores, jornalistas, médicos, encanadores, técnicos, professores. É um aprendizado muito grande”, avalia. Assim, tornou-se o barbeiro oficial de gerações numa mesma família. “Tive clientes em que já estava cortando o cabelo dos netos, a terceira geração”, conta orgulhoso.
E teve também casos curiosos, que prova que barbeiro bom é aquele que está presente na alegria e na tristeza: “cortei cabelo de um cliente que iria se casar e tempos depois ele chegou no salão dizendo que veio cortar o cabelo para o divórcio”, relembra.
E as histórias que ninguém explica: “teve um caso também de um cliente que perdeu o pai e a mãe no mesmo dia, os dois por morte natural, em diferença de horas”, relata.
Tesouro de cachaça ficou no chão
Vez por outra, o pai do Seo Raul, Francisco, tinha mania de curar cachaça. Numa destas ocasiões, reuniu os quatro filhos, pegaram as branquinhas, abriram as garrafas, fecharam ,com rolha e selaram com cera quente. As garrafas foram carinhosamente acomodadas em uma caixa e para garantir que ninguém iria bulir com a bebida, Seu Francisco decidiu enterrar a caixa no piso da cozinha, aproveitando-se de uma grande reforma que fazia na casa.
E decretou que ao cabo de 15 anos, iriam arrancar a caixa de lá para ver como estaria a cachaça. O tempo passou, todo mundo esqueceu do “tesouro”, muito embora pisassem nele todos os dias. Aconteceu que apareceu negócio e a família vendeu a casa e só foi se dar conta de que a cachaça envelhecida enterrada ficara para trás, quando já estava na nova morada. Ficou para santo, mas não foram poucos os amigos do Seo Raul que queriam o mapa da mina para se aventurar a procurar o valioso lote. No fim das contas, ficou para o santo mesmo.
Barba, cabelo e bigode no Tio Sam
Em 1965 – quando por sinal este que vos escreve nasceu -, um ano após o Brasil mergulhar em um dos períodos mais sinistros da sua história, com o golpe militar, Seo Raul decidiu realizar o sonho brasileiro no sonho americano: pegou um avião de verdade e foi ganhar a vida nos Estados Unidos.
Primeiro foi ser alfaiate numa fábrica do Brooklin, em Nova York. A cidade que tanto marcou a vida do cabeleireiro logo abriu oportunidade para o ofício que se transformaria em sua profissão de fé. Passou a trabalhar num grande salão na ilha de Manhatthan, na famosa 6.ª Avenida como cabeleireiro, um lugar chamado New York Hair Stylists, que existe até hoje.
E a receita para fazer a cabeça dos americanos: simplicidade! Seo Raul explica que os americanos, principalmente naquela época, valorizavam a praticidade. “A diferença entre brasileiros e americanos é que os brasileiros são mais vaidosos. Naquela época nos EUA, já se usava muito máquina elétrica e os americanos se contentavam mais com uma aparada básica. Já o brasileiro, requer muito mais acabamento, e isso independe de sexo, tanto faz homens ou mulheres”, explica.
Com o trabalho nos EUA, Seo Raul realizou a meta de tornar-se curitibano por adoção: economizou o suficiente para comprar um apartamento na Rua Comendador Araújo, onde reside até hoje, e o salão no edifício Asa que logo batizou de Nova York Cabeleireiros.
Ao assumir o negócio no edifício Asa “o Mozar já estava lá”. “Quando o Raul comprou o salão em 1979, eu já trabalhava lá há cinco anos. Ele perguntou: – você fica Mozar? E eu fiquei, tanto que agora ele está saindo e eu ainda continuo”, brinca o veterano cabeleireiro Mozar Floro de Melo, há 33 anos na lida. Marlene Soares, a outra profissional do salão, trabalha com Seo Raul há 27 anos.


