Os pagamentos do saber

As férias desenham com maior nitidez os limites entre saber e lazer. Inicia-se em poucos dias mais um período de descanso de professores, alunos e gestores escolares. Os pátios, corredores e salas esvaziam-se. O silêncio anormal invade espaços e tempos. Há um compasso mais distendido para andanças, sonos e comilanças. Quase como uma vingança, os livros são abandonados em armários e gavetas. Todos se empenham em, no que denominam com olhos gulosos, aproveitar o tempo da interrupção dos estudos.

Por razões diversas, em alguns anos não tive férias. O trabalho se estendeu continuadamente meses a fio. O corpo sofreu, a mente afadigou-se, os dias confundiram-se e os trabalhos, embora realizados, careceram de melhor qualidade. Realmente, parar, substituir e relaxar por um tempo maior são verbos e estados da maior necessidade humana.

Causo surpresa aos mais novos quando recordo (não sem nostalgia) que, no início de minha carreira docente, éramos acarinhados pelos órgãos públicos e entidades mantenedoras com férias de três maravilhosos meses! Chegávamos ao início das aulas com inacreditável apetite de trabalho, cansados de tanto vagamundear, entediados de tanta folga! Hoje, uma extensão maior das férias permitiria exercitar melhor nossa capacidade de reflexão sobre o que representamos e o valor real de tudo o que fazemos dentro e fora de sala de aula. Da maneira supersônica com que as férias hoje acontecem, mal temos tempo de ordenar os materiais acumulados pela atividade frenética do ano letivo concluído, e já estamos sendo solicitados a produzir novos e mais eficientes instrumentos de ensino.

Já que estou em onda nostálgica, lembrei-me de um momento em que, em seu excelente livro O espírito das roupas a moda no século dezenove.(Companhia das Letras, 1987), Gilda de Melo e Souza se referia à aparência das antigas mestras: ?A professora era uma figura apagada que podia ser reconhecida à primeira vista pelo vestido simples e discreto, pelo chapeuzinho de palha enterrado com véu marrom ou verde e pelo rosto onde se estampava um olhar fixo de desespero?. Se considerarmos as dimensões do tempo histórico, o século dezenove nem fica tão distante, mas essa descrição e esse olhar sem horizontes se tornam muito presentes. É verdade que hoje trocamos véus por écharpes, vestido pela calça jeans, chapéu por rabo de cavalo. Mas outros adjetivos continuam a caber em nossa imagem, principalmente quando composta pela população mais ignorante. Há poucos dias ouvi, como já ouvira antes e sempre horrorizada, o relato de uma situação que inclui um aluno, com pretensões à aprovação pura e simples, a proclamar em alto e bom som a condição subalterna de seu mestre, atirando-lhe à face a frase inquisitorial: ?Sou eu que ponho comida em seu prato!?. Como se o dinheiro da mensalidade pudesse comprar o conhecimento, a dedicação, a busca contínua de aperfeiçoamento do profissional docente na luta diária contra esse tipo de ignorância.

Final de ano é isso: a disputa por décimos de nota, principalmente naqueles alunos mais displicentes, arrogantes e desatentos, transforma os últimos dias do tal ano letivo em arena de leões e cristãos, para o lazer e o sadismo de uma parcela significativa da sociedade, para a qual a educação não passa de estágio obrigatório e tedioso.

Mais do que no dia oficial do professor, é nessa última semana que o professor gostaria de ser homenageado. Porque conduziu sua disciplina com segurança, distribuiu saberes, estimulou atitudes de persistência e dedicação ao estudo. Infelizmente, é nesse período também que a fragilidade profissional fica exposta à sanha dos menos aquinhoados de caráter.

Sem falar de outras violências, igualmente danosas, que são anunciadas, e por vezes cumpridas, fazendo do magistério um caso de polícia ou de necrotério.

Por isso tudo é que saudamos as férias e lamentamos sua efêmera existência numa vida de muito trabalho.

Felizes férias, irmãos de profissão. E que fevereiro esteja mais distante do que nunca. Que as constelações de Aquário e Peixes, governando fevereiro, venham leves, fluidas e lentas, com nadadeiras desaceleradas, para que tenhamos tempo de esquecer apagamentos e desespero, e possamos retornar envoltos nas écharpes verdes da esperança de um trabalho melhor e mais eficiente no decorrer de um outro ano letivo.

Nota

Meu texto de domingo passado me fez entender melhor porque tenho tão poucos leitores. A crônica saiu com alguns imperdoáveis erros de português. Ao constatá-los, enrubesci. Ao admiti-los, venho pedir desculpas aos leitores. Prometo evitá-los, embora saiba que voltarei a pecar contra a língua portuguesa, destinada que estou a perder as batalhas contra o idioma, mesmo que o continue admirando e a ele desejando sempre servir. Mas as armas de que disponho são fracas. Por isso, vejo-me derrotada com tanta freqüência.

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