Os artigos 944 e 945 do novo Código Civil Brasileiro: Grau da Culpa e Redução Eqüitativa da Indenização

Os artigos 944 e 945, do novo CCB, introduzem a análise da gradação da culpa – e do próprio comportamento da vítima – para se fixar a extensão da reparação do dano.

Diversas codificações estrangeiras, dentre as quais o Código Federal Suíço das Obrigações, consideram, para a fixação da indenização, a gravidade da culpa. Na lei suíça encontramos: “Art. 43 (III. Fixação do Dano) (1) O modo e a extensão da indenização pelo dano causado, estabelece o juiz que, no caso, tem de considerar não só as circunstâncias como a gravidade da culpa. (…) Art. 44 (IV. Motivos de redução) (1) Se o lesado concordou com o ato danoso, ou se circunstâncias, pelas quais deve ele responder, atuaram para criar ou aumentar o dano ou agravaram, de outro modo, a situação do obrigado à indenização, poderá o juiz minorar a obrigação de indenização ou, inteiramente, não a reconhecer. (2) Se o obrigado à indenização que não causou o dano nem intencionalmente nem por negligência grave, ficar, pela prestação da indenização, reduzido a estado de necessidade, poderá o juiz, também por esse motivo, minorar a obrigação de indenizar.” (SOUZA DINIZ. Código Civil Suíço e Código Federal Suíço das Obrigações, pp. 164/165.)

Tradicionalmente, tem-se a culpa levíssima, leve e grave. Poderá o juiz, agora, reduzir eqüitativamente a indenização, mediante a aferição do grau de culpa, cuja gravidade influenciará a quantificação. Incumbirá ao órgão julgador averiguar a culpa, para determinar a obrigação de indenizar; em seguida, definir-lhe a gradação, para a correta valoração pecuniária do ressarcimento (art. 944, parágrafo único). O julgador deverá, também, se for o caso, sopesar a eventual participação da vítima na ocorrência do evento danoso, a fim de excluir o dever de indenizar – ou, atenuá-lo, proporcionalmente, na hipótese de culpas concorrentes (“rectius”, causas concorrentes).

Dispõem os referidos dispositivos legais: “Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade da sua culpa, em confronto com a do autor do dano.”

Consigne-se, desde logo, que “se o fato da vítima surgir como causa exclusiva do dano, resultará eliminado o nexo de causalidade – e exonerará totalmente o demandado”. Por outro lado, a culpa da vítima, quando concorrente, é levada em consideração para exonerar parcialmente o causador do dano. É relativamente raro que a culpa da vítima seja causa exclusiva do dano. Em presença de culpas provadas, tanto da vítima, quanto do requerido, a responsabilidade pelos danos será partilhada entre ambos. A indenização poderá ser reduzida, mas não suprimida totalmente (LE TOURNEAU, Philippe e CADIET, Loïc. Droit de la responsabilité, p. 278 ss.).

A propósito da elaboração legislativa deste parágrafo único do art. 944, inalterado desde o Projeto submetido à Câmara dos Deputados, o Prof. Arthur E. S. Rios (“Responsabilidade civil – os novos conceitos indenizáveis no Projeto Reale”, in Revista de Direito Civil 36/68), expendeu lúcidos e pertinentes comentários, ora transcritos: “A gravidade do ato e não a extensão do dano como medida indenizatória – É uma flexibilidade do Projeto 634 a regra geral encontrada no parágrafo único do art. 946, onde ao invés da indenização pela extensão do dano, temos a indenização do prejuízo pela intensidade da culpa do autor do dano ou o julgar pela eqüidade, reduzindo o `quantum’ indenizatório: `Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.” Tal inciso foi bastante discutido na Câmara dos Deputados pelos Deps. Tancredo Neves, Cleverson Teixeira, Siqueira Campos, Fernando Cunha e outros, com cerca de cinco emendas. S. Exa., que depois foi guindado à Presidência da República, afirmou: `a indenização deve ser plena, de modo a propiciar a integral reparação do prejuízo’ (Emenda 539), enquanto os demais foram para que não se desse `aos juízes tamanha atribuição de alcance impressionante’ conforme expressão de um deles, enquanto o outro dizia: `o perigo está em que há juízes bons, íntegros e ilustres, mas há também os maus, perseguidores e grosseiramente incultos’, todos batendo na tecla da supressão daquele dispositivo. Olvidaram Suas Excelências que o juiz não é instância única, e por outro lado, não se legisla por possíveis erros e defeitos dos aplicadores e sim pela justiça, lógica e humanização da norma. No sentido contrário, ou seja, no sentido de se ampliar o `reduzir’ para `fixar’ firmou-se o Dep. José Bonifácio Neto. O relator geral, dep. Ernani Satyro, recusou todas as emendas, com apoio do Plenário. Com referência à proposta de substituição do termo `reduzir’ para `fixar’ expressou-se: `O poder que no mencionado parágrafo se outorga ao juiz é apenas o de reduzir a indenização por eqüidade, se verificada excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano’. Realmente o `fixar’ que poderia ser também `aumentar’ iria ferir o restitutio in integrum e transformar o dispositivo numa apenação não razoável. O princípio da `redução’ por eqüidade, decorrente das condições econômicas do responsável, já está exitoso em países evoluídos. Uma desgraça não se compensa com outra, ademais quando em se tratando da intensidade leve da culpa, até o homem cauteloso pode incorrer (levíssima) ou o homem médio pode incidir (leve) e sempre somente o querer-meio ser a força motriz.”

A existência de culpa, satisfatoriamente provada, qualquer que seja a intensidade, concede ao lesado direito à reparação (MAZEAUD, Henry e León et TUNC, André. Tratado de la responsabilidad civil, t. 1.º, vol. 2, p. 162.).

A inovação representada pelo artigo 944, do novo Código Civil, entretanto, introduz a necessidade de o juiz estabelecer o grau da culpa com que se houve o causador do dano, com o propósito de fixar com maior justiça a indenização. Assim, o julgador, após demonstrar, concretamente, em que consistiu o agir culposo do réu, deverá avaliar a intensidade da imprudência, imperícia ou negligência verificada no caso concreto – se grave, leve ou levíssima. Somente após análise fundamentada, tendo em conta o padrão de conduta do homem prudente, passará o juiz à quantificação da indenização. O juiz é livre nessa análise; conserva grande liberdade de apreciação. Não existe regra fixa. Preponderará a eqüidade – como o próprio texto legal recomenda. Mas a culpa há de resultar configurada, plenamente provada. Impõe-se, agora, considerar a maior ou menor gravidade da culpa – não para se imputar responsabilidade, posto que, para tal, basta a existência da culpa – mas para se estabelecer o valor da indenização: “A extensão da indenização será determinada por arbítrio judicial, conforme a eqüidade, as circunstâncias e a condição dos interessados. Assim, portanto, o juiz pode decretar uma indenização meramente parcial.” (In ENNECCERUS, Ludwig. Derecho de obligaciones, vol. 2.º, p. 618.)

Na culpa, inexiste intenção de causar o dano, mas há previsibilidade. A culpa grave aproxima-se do dolo, integra a categoria do “quase-delito”. Prosseguem os Mazeaud e Tunc: “(…) a negligência ou imprudência cometida é de tal modo grosseira, que apenas se torna crível que o autor não tenha desejado, ao agir, causar o dano que se produziu”. Apenas a prova da falta de intenção maliciosa afasta a caracterização do dolo. A culpa quase-delitual é um erro de conduta tal, que não o cometeria uma pessoa razoavelmente cuidadosa, que estivesse nas mesmas circunstâncias externas do autor do dano (MAZEAUD, Henry e León et TUNC, André. Tratado de la responsabilidad civil, t. 1.º, vol. 2, pp. 63, 65 e 85).

Enquadrar-se-ão no figurino da culpa grave a supina negligência, a imperícia crassa, a imprudência criminosa. Em França, a Corte de Cassação assentou que a culpa grave, inescusável, “revela gravidade excepcional quando derivada de ato ou omissão voluntários, da consciência do perigo que o autor deveria possuir; ausenta-se toda e qualquer causa justificativa – e se distingue do dolo apenas pela falta de um elemento intencional.”

Julgar-se-á a conduta do causador do dano comparando-a com aquela que teria sido observada por um homem escrupuloso, de inteligência e prudência normais.

Nosso Código, ao restaurar a tradicional gradação da culpa, para determinar a extensão da indenização, em leve, levíssima e grave, faz com que o juiz estabeleça comparações entre condutas, observadas as mesmas condições e iguais circunstâncias de tempo e lugar.

Bustamante Alsina, após esclarecer que a codificação civil argentina não classifica a culpa em graus, indica de que forma deve o juiz atuar para estabelecer a culpabilidade do autor do ato ilícito ou devedor de uma obrigação: “a) considerar em concreto a natureza da obrigação ou do fato – e as circunstâncias das pessoas, tempo e lugar; b) considerar unicamente as condições pessoais do agente em relação ao maior dever de previsibilidade imposto pelas circunstâncias em que atua; c) com tais elementos concretos, deve o juiz criar um tipo abstrato de comparação que lhe permita estabelecer se o réu atuou ou não como deveria atuar – com cuidado, perícia, diligência, prudência, etc.” (BUSTAMANTE ALSINA, Jorge. Teoria general de la responsabilidad civil, p. 334 ss.).

Starck, Roland e Boyer identificam quatro degraus na hierarquia da culpa: intencional, inescusável, grave e leve. Na culpa intencional – ou dolo – a vontade incide sobre o ato e suas conseqüências. Não somente a vontade de agir de tal maneira, mas ainda querer o resultado danoso. A intenção de prejudicar, de causar o dano, é inerente ao dolo.

Restam, portanto, os demais graus de culpa, acima referidos. Inescusável é a culpa de excepcional gravidade, derivado de ato ou omissão voluntária, da consciência do perigo que o autor deveria possuir – e da ausência de qualquer causa justificativa. Distingue-a do dolo – ou culpa intencional – o fato de a vontade não se aplicar às conseqüências danosas do ato em questão.

Quanto à culpa grave, apresenta grau de importância menor que da culpa inescusável. Também é despojada de malignidade – e tampouco se equipara ao dolo. A culpa grave exige julgamento mais severo da conduta do agente, seja pelo comportamento em si, seja pelas conseqüências advindas dessa conduta. Intrinsecamente, revela erro grosseiro, imperícia imperdoável, incúria patente (não perceber o que todos perceberiam). Extrinsecamente, a gravidade decorre da importância do dano causado, da previsibilidade desse dano e do esforço para evitá-lo.

A culpa leve – ou levíssima – é o erro de conduta ao qual todos os indivíduos estão expostos. Apresenta-se mais freqüentemente sob a forma de negligência, revelando falta de atenção – ou imprudência, devido à falha ou insuficiente reflexão sobre a conseqüência de seus atos (in STARCK, Boris; ROLAND, Henri e BOYER, Laurent. Obligations, p. 147 ss.)

Enfim, a culpa, ainda que levíssima, determina a responsabilidade civil. A análise da gravidade determinará o “quantum” indenizatório.

Essa gradação introduzida pelo novo CCB permitirá maior justiça ao se fixar a extensão da reparação – por meio da análise da gravidade da imperícia, negligência ou imprudência com que se houve o causador do dano. Conforme a maior ou menor previsibilidade do resultado, maior ou menor falta de cuidado objetivo, o agir culposo será enquadrado como levíssimo, leve ou grave. Aí, o juiz poderá proceder à justa individualização da culpa e, por conseguinte, determinar a extensão da reparação.

Ressalte-se que tal redução – quando viável – repercutirá sobre todas as verbas indenizatórias: danos materiais, morais, lucros cessantes e pensionamento – quando se tratar de dano a pessoa (morte ou incapacidade para o trabalho). O pensionamento em caso de morte, por exemplo, é fixado em dois terços da remuneração auferida pela vítima, pois se presume ser o terço restante consumido no sustento próprio. Reconhecida a culpa leve, poderá o juiz, após avaliar todas as nuanças do caso, reduzir a pensão para um terço da remuneração do “de cujus”. O mesmo ocorrerá com a compensação do dano moral.

Longe de representar uma benesse ao causador do dano, a modificação, ao primeiro exame, parece-me apropriada à consecução, pelo julgador, da solução mais justa e equânime, em todas as demandas onde se examine a responsabilidade subjetiva, calcada na culpa. Por óbvio, o dispositivo não se estende aos domínios da responsabilidade objetiva, devido à expressa determinação legal.

Miguel Kfouri Neto

é juiz do Tribunal de Alçada do Paraná, mestre em Direito (UEL), professor da Escola da Magistratura.

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