O Supremo Tribunal Federal e o Golpe de 64

Rio de Janeiro, 31 de março de 1964. O presidente da República, João Goulart, o Jango, discursa para uma assembléia de sargentos. Em Juiz de Fora (MG), o general Olímpio Mourão Filho, apoiado pelo governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, desloca as tropas sob o seu comando para o Rio de Janeiro. Exércitos de outros estados também se mobilizam contra o governo. João Goulart segue para a capital federal no dia seguinte.

Brasília, 1.º de abril. Jango deixa a cidade em direção a Porto Alegre (RS). O presidente do Senado, Auro Moura Andrade, anuncia que o cargo de presidente da República está vago. O presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, assume a posição, mas o poder já não está mais nas mãos dos civis. Jango exila-se no Uruguai.

O período democrático iniciado em 1945, com o fim da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, é interrompido. Inaugura-se o regime militar, que vai durar 21 anos, de 1964 a 1985. Os militares o justificaram como sendo uma forma de manter a ordem social e proteger o País do comunismo, restabelecendo a democracia. No entanto, as instituições do País começam a ser alteradas por decretos, batizados de Atos Institucionais (AI).

O Supremo Tribunal Federal (STF) não ficou imune aos efeitos do golpe. Nos primeiros anos da ditadura, até a decretação do AI-5, em 1968, ainda era possível conceder habeas corpus a presos políticos. Com o AI-5, suspenderam-se os habeas corpus para os crimes políticos e para os crimes contra a segurança nacional, a ordem econômica e social, e a economia popular.

Houve, no entanto, movimentos de resistência de ministros do Supremo durante todo o regime militar. O jornalista e professor de História da Imprensa da Universidade de Brasília (UnB), Carlos Chagas, aponta dois episódios emblemáticos ocorridos na Suprema Corte: o “caso das chaves” e o da “lei da mordaça”.

Logo após ser empossado no cargo, o general Humberto de Alencar Castello Branco, o primeiro presidente do período militar (1964-1967), fez uma visita de cortesia ao STF. Em seu discurso, Castello Branco tentou enquadrar o Supremo no movimento de 64, pedindo que o Tribunal seguisse “as orientações da revolução, que é como eles chamam o golpe”, diz Carlos Chagas.

O jornalista conta que o, à época, presidente do STF, ministro Álvaro Ribeiro da Costa, respondeu de forma dura, dizendo que o Supremo era o ápice do Poder Judiciário e que não deveria ser enquadrado em nenhuma ideologia revolucionária, sobretudo em um golpe como aquele. Castello Branco retrucou, falando que quem mandava era o Executivo. Desafiado, Ribeiro da Costa deu um recado ao presidente: se cassassem algum ministro do Supremo, ele fecharia o Tribunal e entregaria as chaves ao porteiro do Palácio do Planalto.

Para não cassar ministros do STF, Castello Branco aumentou o número de magistrados do Tribunal de 11 para 16, por meio do AI-2, de 27 de outubro de 1965. Nomeou cinco ministros: Adalício Nogueira, Prado Kelly, Oswaldo Trigueiro, Aliomar Baleeiro e Carlos Medeiros. Mais tarde, em fevereiro de 1967, nomeou o deputado federal Adaucto Lucio Cardoso, da União Democrática Nacional (UDN), para ocupar a vaga deixada pela aposentadoria do ministro Ribeiro da Costa. Foi justamente Adaucto Lucio o protagonista de outro célebre exemplo de resistência do STF, o caso da lei da mordaça.

A lei da mordaça, um decreto-lei que instituía a censura prévia de originais de qualquer livro que se quisesse publicar, foi aprovada pelo Congresso no governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). A oposição entrou com um recurso no STF, dizendo que aquela norma era inconstitucional, por atentar contra a liberdade de expressão, mas o Supremo disse que não poderia se intrometer nos interesses da revolução.

Indignado com o posicionamento do Tribunal, o ministro Adaucto Cardoso, que fora nomeado pelo militares, levantou-se, retirou a toga e disse que nunca mais voltaria ao Supremo, solicitando sua aposentadoria nessa sessão de março de 1971, logo após o julgamento do recurso. Na opinião de Carlos Chagas, esse foi um ato libertário.

O professor de Ciência Política Otaciano Nogueira, da UnB, também considera a atitude de Adaucto Cardoso uma das melhores ilustrações de que havia inconformismo no Judiciário. Nogueira pondera que o Supremo tinha independência formalmente, mas que os Atos Institucionais acabaram com a segurança jurídica no País.

“O que o Supremo podia fazer era julgar de acordo com aquela ordem jurídica que se estabeleceu arbitrariamente. Pergunta-se: o Supremo era respeitado? Nas decisões que eram possíveis, sim. Na realidade, a maioria das pessoas que era submetida ao arbítrio era julgada pela Justiça Militar”, explica o professor.

Com a decretação do AI-5 pelo governo do general Arthur da Costa e Silva (1967-1969), em 13 de dezembro de 1968, três ministros do STF foram obrigados a se aposentar: Victor Nunes Leal, vice-presidente da Corte, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Nunes Leal tinha sido nomeado ministro pelo governo Juscelino Kubitschek, enquanto que Lins e Silva e Hermes Lima tinham sido nomeados por Jango.

Com o afastamento dos três magistrados, o presidente do STF na época, ministro Antônio Gonçalves de Oliveira, renunciou ao cargo, um mês após ser empossado, e pediu sua aposentadoria. O ministro Antônio Carlos Lafayette de Andrada, que deveria ser seu sucessor, pelo critério de antigüidade, fez o mesmo.

O escritor e funcionário aposentado do STF Ézio Pires, autor do livro “O Julgamento da Liberdade”, que relata fatos ocorridos no Supremo durante o regime militar, destaca o discurso proferido pelo ministro Luiz Galloti em fevereiro de 1969, homenageando os três colegas afastados pelo golpe. Em seu discurso, Galloti disse que “os ministros foram aposentados pelo governo da revolução por que considerados incompatíveis com ela. Os atos da aposentadoria, por dispositivo expresso no Ato n.º 5, estavam excluídos de apreciação judicial”.

Ézio Pires lembra que, antes de ser afastado do cargo, o ministro Evandro Lins e Silva chegou a sugerir ao presidente do STF, Gonçalves de Oliveira, que uma comissão do Supremo fosse à Organização das Nações Unidas (ONU) para pedir as garantias previstas na Carta dos Direitos do Homem, suprimidas pelo AI-5. A idéia foi abandonada, pois os integrantes da comissão correriam o risco de serem presos ao retornarem ao Brasil, diz o escritor.

O procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, vivenciou a ditadura em dois momentos importantes de sua vida: quando entrou na faculdade de Direito da UnB, em 1965, e quando ingressou no Ministério Público Federal, em 1973. Fonteles lamenta a perda de vários amigos durante a ditadura, como a de Honestino Guimarães, estudante da UnB que desapareceu após ser preso em 1973, no Rio de Janeiro, aos 26 anos.

No Ministério Público Federal, “trabalhava-se sob o estado do medo”, relata Fonteles. Segundo o procurador, naquela época o Ministério Público era, na verdade, o defensor do Poder Executivo. A partir da Constituição de 1988 foi que o Ministério Público afirmou seu papel de instituição da sociedade, explica. Ele conta ter se refugiado na área de Direito Penal, para, assim, não ter o compromisso de defender atos administrativos do Executivo.

“Não tínhamos a menor garantia, poderíamos ser postos pra fora a qualquer instante”, recorda Fonteles, que diz que os trabalhos foram conduzidos assim até 1985, quando se redemocratizou o País e começou a nascer um novo Ministério Público. “Sempre digo que o grande artífice do novo Ministério Público Federal é aqui desta Casa, honras da Casa, o ministro José Paulo Sepúlveda Pertence, que foi nosso procurador-geral na chamada nova República, dos novos tempos. Aí volta a esperança”, complementa.

O ministro Sepúlveda Pertence lecionava na Universidade de Brasília no momento do golpe, que, para ele, ocorreu, de fato, em 1.º de abril de 1964. “Situar o golpe em 31 de março foi uma invenção dos vitoriosos. Na verdade, a queda do governo se deu no dia seguinte, em 1.º de abril”, sustenta o ministro.

A UnB foi invadida em 9 de abril de 1964, e Sepúlveda Pertence foi preso, com outros 14 professores que constavam de uma lista dos militares. Eles foram levados para o Teatro Nacional, onde passaram a noite e, no dia seguinte, seguiram para o Setor Militar. “Percebemos a seriedade da coisa quando vimos chegar magistrados, deputados federais, que tinham sido presos também. Naquele dia, tinha sido baixado o Ato Institucional, que normatizava o golpe”, conta o ministro, referindo-se ao AI-1, baixado em 9 de abril de 1964 pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.

Em março de 1985, Pertence foi nomeado procurador-geral da República para o Ministério Público Federal formado por Tancredo Neves. O ministro ressalta que a retomada do processo democrático e a discussão sobre a Assembléia Constituinte permitiram a consciência de que a função de Advocacia da União, que o Ministério Público então desempenhava, sacrificava, ou era incompatível, com a função de Ministério Público Federal que se deveria ter. “Meu grande orgulho, naquela época, era ter colaborado para o desenho do que viria ser o Ministério Público na Constituição de 1988”, afirma Pertence.

O presidente do STF, ministro Maurício Corrêa, advogava em Brasília quando o golpe militar foi deflagrado. Além de exercer a advocacia, chefiava a representação do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM) na capital federal, entidade que era visada pelo novo regime por ter grande número de sindicalistas.

Horas após a tomada de poder pelos militares, o prédio em que o IAPM funcionava foi ocupado e, diante da nova administração, Corrêa pediu sua exoneração do cargo, que só foi concedida um mês depois. “Não há nada mais triste e decepcionante, sobretudo para um advogado, que presenciar a modificação da estrutura constitucional de um país. Quando esse país sai da rota da legalidade e cai na do arbítrio é horrível para o advogado. Ele se sente completamente vulnerável, a não ser que seja um profissional que não tenha essa concepção”, lamenta Corrêa.

Ao analisar o impacto do golpe militar na Suprema Corte, Corrêa avalia que o STF sofreu terrivelmente. “É como se fosse uma bala de canhão que tivesse penetrado no seio da magistratura, desmontando a mecânica de funcionamento do Judiciário, que fica sem a garantia da existência de um ordenamento constitucional. O ordenamento (jurídico) passa a expressar a vontade dos que estão no poder. Os militares tomaram o poder e fizeram o que bem entenderam”, afirma o ministro.

Maurício Corrêa, que participou da Assembléia Nacional Constituinte como senador, esclarece que a Constituição de 1988 restaurou tudo aquilo que tinha sido desfeito e devolveu as prerrogativas dos magistrados. “Passamos a viver um regime constitucionalizado. Não há nenhum tipo de coação para que um ministro, por exemplo, julgue de acordo com sua consciência. Muitas vezes, o governo quer uma coisa e o Supremo julga contrariamente. Não há hoje, felizmente, nada que nos amedronte”, reitera Maurício Corrêa. (STF)

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