O STF está assumindo um “ativismo judicial” sem precedentes?

Concluído o julgamento do famoso caso Raposa Serra do Sol (demarcação de terras indígenas), mais uma vez entrou em pauta o tema do “ativismo judicial”, visto que o Min. Menezes Direito sugeriu a imposição de 19 medidas para a implementação da demarcação contínua. De ativismo judicial já se falou também quando o STF impôs a fidelidade partidária, o direito de greve no serviço público, a proibição do nepotismo, o uso restrito das algemas etc.

Vamos aos conceitos: judicialização não se confunde com ativismo judicial. A judicialização nada mais expressa que o acesso ao judiciário, que é permitido a todos, contra qualquer tipo de lesão ou ameaça a um direito. É fenômeno que decorre do nosso modelo de Estado e de Direito. Outra coisa bem distinta é o “ativismo judicial” (que retrataria uma espécie de intromissão indevida do Judiciário na função legislativa, ou seja, ocorre ativismo judicial quando o juiz “cria” uma norma nova, usurpando a tarefa do legislador, quando o juiz inventa uma norma não contemplada nem na lei, nem dos tratados, nem na Constituição).

O ativismo judicial foi mencionado, pela primeira vez (cf. M. Pereira, em O Globo de 21/3/9, p. 4), em 1947, pelo jornalista americano Arthur Schlesinger, numa reportagem sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos. Para ele há ativismo judicial quando o juiz se considera no dever de interpretar a Constituição no sentido de garantir direitos. Como se vê, o conceito de ativismo judicial que acima utilizamos não coincide exatamente com o que acaba de ser descrito. Se a Constituição prevê um determinado direito e ela é interpretada no sentido de que esse direito seja garantido, para nós, isso não é ativismo judicial, sim, judicialização do direito considerado. O ativismo judicial vai muito além disso: ocorre quando o juiz inventa uma norma, quando cria um direito não contemplado de modo explícito em qualquer lugar, quando inova o ordenamento jurídico.

É preciso distinguir duas espécies de ativismo judicial: há o ativismo judicial inovador (criação, ex novo, pelo juiz de uma norma, de um direito) e há o ativismo judicial revelador (criação pelo juiz de uma norma, de uma regra ou de um direito, a partir dos valores e princípios constitucionais ou a partir de uma regra lacunosa, como é o caso do art. 71 do CP, que cuida do crime continuado). Neste último caso o juiz chega a inovar o ordenamento jurídico, mas não no sentido de criar uma norma nova, sim, no sentido de complementar o entendimento de um princípio ou de um valor constitucional ou de uma regra lacunosa.

No caso da imposição da fidelidade partidária não havia nenhuma regra explícita a respeito do tema. Que fizeram os Ministros do STF? Com base no princípio democrático (um dos eixos do moderno constitucionalismo) criaram uma regra: quem mudar de partido depois da eleição perde o mandato. Isso não estava explícito em nenhum lugar, logo, houve ativismo judicial. De que espécie: inovador ou revelador? Diante dos conceitos acima emitidos, o revelador (do sentido do princípio democrático).

E no caso da demarcação indígena (Raposa Serra do Sol), qual foi o ativismo judicial (naquelas 19 medidas)? Diríamos: bastante revelador mas já se incursionando no inovador. Qual é o problema de todo ativismo judicial? Está no risco de o Poder Judiciário perder sua legitimidade democrática, que é indireta. Em que sentido? As decisões dos juízes são democráticas na medida em que seguem (nas decisões judiciais) aquilo que foi aprovado pelo legislador. Sempre que o Poder Judiciário inova o ordenamento jurídico, criando regras antes desconhecidas, invade a tarefa do legislador, ou seja, se intromete indevidamente na função legislativa. Isso gera um outro risco: o da aristocratização do Estado e do Direito (que, certamente, ninguém no século XXI está muito disposto a aceitar).

Quais seriam as razões do ativismo judicial no Brasil? Luiz Roberto Barroso invoca duas (O Globo de 22/3/9, p. 4): (a) nova composição do STF (por Ministros bastante preocupados com a concretização dos valores e princípios constitucionais) e (b) crise de funcionalidade do Poder Legislativo (que estimula tanto a emissão de Medidas Provisórias pelo Executivo como o ativismo judicial do Judiciário). Todo poder quando não exercido (ou quando não bem exercido) deixa vácuo e sempre existe alguém pronto para preencher esse espaço vazio por ele deixado.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, professor de Direito penal na Universidade Anhangüera e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).

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