O relatório REDRESS sobre reparação de tortura – II – Estudo individualizado sobre o Brasil

Conforme escrevemos em artigo anterior, a organização REDRESS publicou recentemente o estudo “Reparação de Tortura: um levantamento da legislação e da prática em trinta países selecionados”. Dentre esses países figura o Brasil, cujo relatório está disponível em http://www.redress.org/publications/Audit/Brazil.pdf.

Para realizar o trabalho, a entidade analisou inicialmente os textos jurídicos do Brasil, particularmente a Constituição Federal, a posição do país perante os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, a legislação infraconstitucional, inclusive a Lei sobre Tortura (Lei 9455/97), além dos procedimentos judiciários e administrativos. Posteriormente, a prática da tortura também foi objeto de estudo, concluindo que ela havia sido um instrumento do Estado durante o período militar mas que, ainda hoje, é praticada pelas forças de segurança, principalmente contra setores menos favorecidos da população, como jovens, pessoas carentes, minorias étnicas, indígenas e também contra defensores de direitos humanos. Foram, ainda, incluídas as constatações sobre tortura praticada por policiais como meio de obtenção de informações e confissões e como instrumento para manutenção da ordem, além das péssimas condições em que se encontra a população carcerária.

A REDRESS analisou outros documentos realizados anteriormente por entidades internacionais, sobre a situação no Brasil. O primeiro foi o parecer do Comitê da ONU contra a Tortura, datado de 2001, que expressou preocupação, dentre outros fatores, com a persistência de uma cultura no país que aceita abusos de policiais; com a enorme quantidade de alegações de atos de tortura e tratamento cruel, desumano e degradante; e com a “impunidade de fato” de que gozam os perpetradores de tortura. O segundo texto, o Relatório do Relator Especial da ONU sobre Tortura, expedido em 2000, denunciou que a tortura no Brasil é virtualmente ignorada e que os promotores e juízes preferem usar a noção tradicional e inadequada de abuso de autoridade ou violação da integridade física. Por fim, lembrou das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para que o país se empenhe em dar andamento efetivo às investigações, condenar e punir os responsáveis pelos atos e proceder à reparação das vítimas e seus familiares.

O fato das alegações de tortura não causarem grandes reações da sociedade brasileira quando tornadas públicas foi constatado pela ONG. Há no país uma percepção de que a tortura não é um crime sério, talvez porque as vítimas são geralmente pessoas que compõem a classe menos favorecida. Além disso, existe uma grande resistência em denunciar, seja por falta de conhecimento dos direitos ou por medo de represálias. Quando as autoridades responsáveis têm coragem de levar adiante um caso de tortura praticada por policiais, encontram uma série de dificuldades, como falta de cooperação daqueles que estão em situação hierárquica superior ao policial ou risco de perseguição e discriminação. Quando a investigação é feita pelos próprios policiais, normalmente não tem continuidade e praticamente não chega ao poder judiciário, muito menos com base na Lei da Tortura. Insiste-se na necessidade de exames periciais dos danos físicos, afastando-se a averiguação de casos de ações humilhantes – que ridicularizam o indivíduo, de asfixia, ou de tortura por métodos que não deixam marcas. Destaca-se, ainda, que o ônus da prova recai sobre a pessoa que alega ter sido torturada para prestar depoimento ou confissão, além do prevalecimento do testemunho policial em detrimento das considerações da alegação de tortura, durante o processo judicial.

Nenhum caso de alegação de tortura chegou ao fim até hoje no Brasil. Os poucos que geraram condenação se encontram em fase de recurso. Além disso, nem legislação brasileira prevê formas de reparação que incluam reabilitação e garantias de não-repetição, nem o Estado tem mecanismos ágeis para concedê-las.

A prática contínua e sistemática da tortura no Brasil é de amplo conhecimento das autoridades governamentais e também da sociedade brasileira. O relatório REDRESS vem não só confirmar a realidade dos fatos mas também mostrar que essa problemática ultrapassa as fronteiras geográficas. O mundo todo percebe e sente indignação em relação às atrocidades aqui cometidas. Cabe ao Brasil, então, tomar medidas concretas e urgentes para reverter essa situação.

Tatyana Scheila Friedrich

– mestre/UFPR e professora de Direito Internacional Público e Privado e Direito da Integração Regional, foi colaboradora na realização da pesquisa sobre a tortura no Brasil.

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