O que são “Antecedentes Turbulentos” e “Queima de Etapas”? Pobre de nós!

        Em recentíssima decisão monocrática, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio (quem diria…) negou pedido de liminar formulado no Habeas Corpus nº. 107413 a um condenado pelo Juízo da 3ª. Vara Federal Criminal da Comarca de Porto Velho. Preso preventivamente desde 6 de outubro de 2010, o acusado contesta decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que lhe negou pedido de recorrer da condenação em liberdade. Naquele Superior Tribunal, ele pediu a extensão de liminar que foi concedida a uma corré no mesmo processo, que obteve esse direito, uma vez que, na sentença, o juízo de primeiro grau não teria indicado elementos concretos para mantê-la presa. Ao indeferir o pedido do condenado, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça apoiou-se em documentação juntada ao processo pelo Juízo de primeiro grau, segundo a qual ele “registra antecedentes turbulentos, mercê de envolvimento em furto, homicídio qualificado-tentado, tráfico de drogas e associação para o tráfico”. Ao indeferir o pedido de liminar, o Ministro relator observou que, para o Supremo Tribunal Federal julgar o pedido formulado seria preciso que o Superior Tribunal de Justiça se pronunciasse anteriormente sobre o caso específico. É que, segundo o Ministro “não cabe a queima de etapas”.
        Pois é, lamentavelmente, mesmo o “Dom Quixote” do Supremo Tribunal Federal (ou o conhecido “voto vencido”), deu uma vacilada e aceitou tais (inaceitáveis) “antecedentes turbulentos” e a uma covarde “queima de etapas” para fechar os olhos a uma (única e eficaz) garantia constitucional que temos para o direito de locomoção.
        Pontes de Miranda, se vivo, espernearia! Rui Barbosa, pior! Pedro Lessa ficaria ruborizado… Óbvio que não falarei de João Sem-Terra, nem dos barões ingleses, pois estes, muito possivelmente, não tinham ideia do bem que faziam àquela altura para a liberdade humana (Carta Magna , 1215).
        É lamentável como o habeas corpus vem sendo achincalhado pelos nossos juízes, tribunais e, incrivelmente, pela Suprema Corte (veja, por exemplo, o esdrúxulo Enunciado 691 da súmula do Supremo Tribunal Federal).
        Como se sabe, o habeas corpus deve ser necessariamente conhecido e concedido sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, pois se visa à tutela da liberdade física, a liberdade de locomoção do homem: ius manendi, ambulandi, eundi ultro citroque. Como já ensinava Pontes de Miranda, em obra clássica, é uma ação preponderantemente mandamental dirigida “contra quem viola ou ameaça violar a liberdade de ir, ficar e vir.“[1]
        Para Celso Ribeiro Bastos “o habeas corpus é inegavelmente a mais destacada entre as medidas destinadas a garantir a liberdade pessoal. Protege esta no que ela tem de preliminar ao exercício de todos os demais direitos e liberdades. Defende-a na sua manifestação física, isto é, no direito de o indivíduo não poder sofrer constrição na sua liberdade de se locomover em razão de violência ou coação ilegal.”[2]
        Aliás, desde a Reforma Constitucional de 1926 que o habeas corpus, no Brasil, é ação destinada à tutela da liberdade de locomoção, ao direito de ir, vir e ficar.
        Ademais, não há falar-se em “queima de etapas” quando se está em jogo a presunção de inocência, que acode a todos nós. Não por menos, Julian Lopez Masle e Maria Inês Horvitz afirmam que “(…) el principio de inocência no excluye, de plano, la posibilidad de decretar medidas cautelares de carácter personal durante el procedimiento. En este sentido, instituiciones como la detención o la prisión preventiva resultan legitimadas, en principio, siempre que no tengan por consecuencia anticipar los efectos de la sentencia condenatória sino asegurar fines del procedimiento”[3]
        O problema, no fundo no fundo, ainda é o nosso Código de Processo Penal (e não só ele, óbvio…). A propósito, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, afirma que “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (…) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (…) “[4]
      
 Afinal de contas, como já escreveu Cappelletti, “a conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas.“[5] Devemos interpretar as leis ordinárias em conformidade com a Carta Magna, e não o contrário! Como magistralmente escreveu Frederico Marques, a Constituição Federal “não só submete o legislador ordinário a um regime de estrita legalidade, como ainda subordina todo o sistema normativo a uma causalidade constitucional, que é condição de legitimidade de todo o imperativo jurídico. A conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todos.“[6]
        James Goldshimidt[7] já afirmava no clássico “Problemas Jurídicos e Políticos del Proceso Penal” que a estrutura do processo penal de um país indica a força de seus elementos autoritários e liberais.[8]
        Abaixo, portanto, aos chavões, meramente retóricos e fascistas, tais como “antecedentes turbulentos” e “queima de etapas”.
        Evoé Ministros das Liberdades Públicas!
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[1] História e Prática do Habeas Corpus, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1999, p. 39.
[2] Comentários à Constituição do Brasil, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 312.
[3] Derecho Processual Penal Chileno,  Tomo I,  Santiago do Chile : Editorial Jurídica de Chile, 2003, p. 83.]
[4] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.
[5] Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Campinas: Bookseller, 1998, Vol. I, p. 79.
[6] Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 79.
[7] Para Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “nunca foi tão importante estudar os Goldschmidt, mormente agora onde não se quer aceitar viver de aparências e imbrogli retóricos.” (O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 12).
[8] Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 37.

Rômulo de Andrade Moreira
é Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos na Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador – UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG), IELF (SP) e do Centro de Aperfeiçoamento e Atualização Funcional do Ministério Público da Bahia. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em coautoria com Issac Sabbá Guimarães), ambas publicadas pela Editora Juruá, 2010 (Curitiba) e “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares – Comentários à Lei nº. 12.403/11”, 2011, Porto Alegre: Editora LexMagister, além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, publicado pela Editora JusPodivm, 2008 (estando no prelo a 2ª. edição). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

 

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