O problema da “menoridade” e do instituto da “representação legal” no Processo Penal, em face do novo Código Civil

O Código de Processo Penal, em várias de suas disposições usa o termo “menor” (arts. 15, 194, 449); às vezes fala do “menor de 21 anos” (34, 52, 54, 279, III, c, segunda parte, 564, III, c), em outras disposições emprega a expressão “maiores de 21 anos” (art. 434, etc.); e, finalmente, em muitas delas utiliza as palavras “representante legal”, referindo-se àquele que representa o menor de 21 e maior de 18 anos.

De que critério se valeu o legislador processual penal para exigir a idade de 18 anos para o cidadão poder atuar em juízo e por que reclamou a intervenção do seu “representante legal” quando estiver na faixa etária entre os 18 e 21 anos? Quanto à idade dos 18 anos, é fácil entender: a maioridade penal poderia ter sido fixada aos 14 anos, aos 16, aos 18, aos 21. Questão de política criminal, e apenas de política criminal, levou o legislador a optar pela idade de 18 anos. Entendeu-se que nessa idade o homem já tem discernimento ético para saber o que é ou não contrário à comum consciência jurídica. Como bem disse Aníbal Bruno, “A capacidade de entender o caráter criminoso do fato não importa em que o agente possa ter conhecimento de que o seu ato é definido em lei como crime, não importa na capacidade de consciência da sua antijuridicidade em sentido estrito; importa apenas na possibilidade, para o agente, de compreender que o seu comportamento é reprovado pela ordem jurídica, não nos termos precisos de um conhecimento técnico, como o possui o jurista, mas nos limites em que o pode compreender o leigo” (Direito penal, parte geral, Rio de Janeiro, Forense, 1967, t. 2.º, p. 45). Daí haver o Código Penal de 40 adotado a imputabilidade da pessoa física ao atingir os 18 anos de idade.

Partindo dessa idéia, não seria justo que esse mesmo cidadão, considerado imputável, podendo ser sujeito ativo de crime não pudesse exercer o direito de “queixa” ou de “representação”. Por isso, o legislador processual penal procurando entrar em harmonia com o legislador penal encontrou na idade dos 18 anos um razoável sintonizador, permitindo àquele que completou 18 anos o exercício do direito de queixa ou de representação. Mas, levando em conta que a Lei de Introdução ao Código Civil que rege a atuação do ordenamento jurídico, por ser direito sobre direito, dispôs no seu art. 7.º que é a lei do País em que está domiciliada a pessoa que determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, nome, capacidade e os direitos de família, e considerando que o Código Civil, no art. 6.º, estabeleceu serem relativamente incapazes os menores de 21 e maiores de 16 anos, sendo nesses casos assistidos pelo seu representante legal, determinou o legislador processual penal que a pessoa que estivesse na faixa etária entre os 18 e 21 anos, poderia exercer o direito de queixa ou de representação, sem afastar a figura do seu representante legal, em consonância com o Direito Civil, criando, assim, dois titulares alternativos do direito de queixa ou de representação. Daí as regras dos arts. 34, 53, 54 e outros do CPP.

Observe-se que o legislador processual penal para fixar a idade mínima dos peritos, intérpretes e jurados em 21 anos, louvou-se no Código Civil, que fixou nessa idade o fim da menoridade. Por que a exigência dos maiores de 21 anos? Responda-se com segurança: porque nessa idade, no entender do legislador civil de 1916, que por sua vez inspirou o legislador processual penal, o homem torna-se absolutamente capaz, adquire aptidão para exercitar direitos. Atualmente, tendo o novo Código Civil fixado a maioridade aos 18 anos, parece-nos que a idade mínima para exercer as funções de perito, de intérprete, de tradutor e de jurado será a da maioridade: 18 anos. Não haverá mais razão séria para se exigir tenha o cidadão idade superior a 21 anos… De 1916 para cá o mundo mudou, outros são os costumes (alguns abastardados, é verdade…), o progresso da ciência, os meios de comunicação, televisão, o mundo mágico do computador, tecnologia avançada, o homem indo à lua, naves pelo espaço cósmico, telefone sem-fio, celulares, internet, tudo isso criou, por assim dizer, uma nova mentalidade. A geração de hoje é outra. Não se pode comparar uma moça de 18 anos de hoje com outra da mesma idade dos anos 50 e muito menos dos anos 40. Já há movimento para abolir do Código Penal a figura da sedução… Os moços de hoje têm outra visão dos problemas da vida e do mundo. A luta pela vida fê-los adquirir uma maturidade precoce. Pode-se até dizer que os nossos moços perderam a mocidade… Os costumes são outros. E o legislador não podia ficar inerte, alheio a todas essas transformações socioculturais. “Não pode o Direito isolar-se do ambiente em que vigora, deixar de atender às outras manifestações da vida social e econômica…” disse Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação do direito, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1961, p. 200). Saleilles, em uma de suas aulas, observava, já em 1910, que “as mudanças econômicas e sociais constituem o fundo e a razão de ser de toda a evolução jurídica; e o Direito é feito para traduzir em disposições positivas e imperativas toda a evolução social…”(Apud Carlos Maximiliano, Hermenêutica, cit. p. 203, n.º 171). E foi o que se fez. Se, por acaso, o legislador processual penal pudesse e houvesse adotado regras próprias sobre maioridade e representação legal, seria diferente. E o legislador não podia ficar inerte, alheio a todas essas transformações socioculturais. Já se pensa em fixar a maioridade penal aos 14 ou 16 anos.

Ora, se o novo Código Civil, tendo em vista toda essa evolução da humanidade, toda essa gama de transformações, todos esses avanços nos vários setores da atividade humana, fixou, no art. 5.º, o fim da menoridade aos 18 anos, parece óbvio não mais se justificar a regra que proíbe serem o perito, o intérprete, o tradutor e o jurado menores de 21, conquanto não sejam menores de 18 anos… o que permite ao pai, tutor ou curador ofertar queixa ou representação em lugar da vítima que já completou 18 anos.

Onde o legislador processual penal descobriu que aos 21 anos a pessoa tem aptidão para o exercício de direitos? Responda-se: no art. 9.º do Código Civil de 1916… E hoje o que diz o diploma civil? Que a menoridade cessa aos 18 anos. Sendo assim, se foi naquela disposição que o legislador processual penal se inspirou, se o Código de Processo Penal não disciplinou o problema da capacidade para o exercício de direitos e, uma vez que o Código Civil diminuiu a plena capacidade dos 21 para os 18 anos, não se justificam as restrições dos arts. 279, III, segunda parte, 280, 281 (por extensão) e do art. 434 todos do CPP.

Se aos 18 anos, conforme a nova ordem, aquele que completar 18 anos adquire o pleno exercício dos seus direitos, parece-nos um não-senso falar em curador do menor que ainda não completou os 21 anos. Tampouco se pode falar em “representante legal do maior de 18 anos”, salvo a hipótese de ser ele mentalmente incapaz. Observe-se que o Código de Processo Penal não diz quem é o representante legal do maior de 18 e menor de 21 anos. Se esse representante é legal, está previsto em lei, e como o CPP não disciplinou a matéria, segue-se haver o legislador processual penal, nesse particular, se abeberado em normas do Código Civil, sede própria, embora não exclusiva, para regular a capacidade das pessoas. A Constituição já havia reconhecido essa capacidade ao estabelecer a obrigatoriedade do voto aos maiores de 18 anos.

Como o atual Código Civil não mais admite representação legal para os maiores de 18 e menores de 21 anos, não se pode dizer, sem cometer colossal enormidade, que essa disposição não atingiu o Código de Processo Penal. Se houver quem discorde desse entendimento, deverá indicar a lei que disciplina a representação dos maiores de 18 anos e dizer quem são esses representantes. E ganhará o reino dos céus quem o disser. Note-se que o instituto da “representação legal”, no sentido de alguém poder atuar legalmente em nome de outrem é matéria da alçada do Código Civil. Se este aboliu a representação legal dos maiores de 18 anos, a parte final do disposto no art. 34 do CPP tornou-se inaplicável. Não se pode esperar que um dia o legislador tome as necessárias providências para ajustar o Código de Processo Penal às disposições do novo diploma civil naqueles casos em que o anterior Código Civil forneceu elementos para a elaboração do estatuto processual penal. Exemplo: o problema da maioridade. O Código anterior estabelecia que a menoridade cessava aos 21 anos. Inspirado naquela disposição, o legislador processual penal a adotou em inúmeras passagens (arts. 15, 34, 52, 54, 194, 262, 564, III, c, 449 etc.). Dizendo o art. 34 que o direito de queixa do menor de 21 e maior de 18 pode ser exercido por ele ou pelo seu representante legal, e considerando que o CPP não disse quem é esse “representante legal”, doutrina e jurisprudência, sem discrepância valiam-se do instituto da representação do Direito Civil. Logo como cessou a representação legal do maior de 18, e sendo o CPP omisso a respeito, não mais havendo representante legal para os maiores de 18, indubitavelmente o art. 34 e outros artigos espraiados pelo CPP perderam sua importância.

Em face do art. 5.º do diploma civil de 2002, é preciso adequar essas normas processuais penais ao novo diploma, o mesmo que as inspirou ao legislador processual penal. Não faz sentido, é um não-senso, permitir ao pai, hoje, exercer o direito de queixa ou de representação em nome do filho que já completou 18 anos. Da mesma forma que no ano passado, seria inconcebível um pai ofertar queixa em relação a alguém que houvesse ofendido a honra do seu filho que já havia completado os 21 anos. Hoje seria renovada a absurdez se ele oferecesse queixa como “representante” legal do filho que já atingiu a maioridade. Torna-se inevitável adequar a ratio da regra contida no art. 34, ao falar em ofendido menor de 21 e maior de 18 anos, à mudança que sofreu o diploma responsável pela fixação da maioridade aos 21 anos.

Em face dessas considerações, entendemos ser coisa do passado a figura do curador “ao menor de 21 e maior de 18 anos”, a exigência de o perito ter no mínimo 21 anos e também a “representação legal” daquele que já houver cumprido os 18 anos de idade.

É o que nos parece.

Fernando Tourinho Filho

é professor de Direito Prodessual Penal.

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