O pito do bispo

O presidente Lula foi à missa no dia 1.º de maio, decerto movido por alguma inspiração profunda. Escolheu, para rezar, a Igreja Matriz de São Bernardo do Campo, a mesma em que se refugiava nos velhos tempos de sindicalista fazedor de greve e fugitivo da polícia. Além de ouvir a prática do bispo dom Nelson Westrup, que centrou fogo na crítica ao “agravamento crescente das desigualdades sociais”, teve que agüentar um provável parente da primeira-dama, o padre Décio Rocco Gruppi, na leitura que fez da carta do recém-concluído encontro nacional da Conferência dos Bispos do Brasil -CNBB que, igualmente, condena a distância em que o governo se mantém dos pobres e excluídos. “Como calarmos?”, perguntou o sacerdote mensageiro.

Embora todos os integrantes do primeiro escalão do governo que ali estavam tenham teorizado sobre o fato de que Lula tirou de letra toda a carraspana e, portanto, não sofreu nenhum tipo de constrangimento, é difícil acreditar que isso seja verdade. Não é fácil para quem prometeu redescobrir o Brasil e curar suas feridas sociais mais profundas ouvir tudo o que foi pronunciado, incluindo as severas críticas ao ínfimo salário mínimo que acabara de decretar. “O justo salário pode ser considerado como a verificação da chave concreta da justiça de cada sistema socioeconômico”, disse o bispo.

Na missa, que durou cerca de duas horas e meia, Lula teve oportunidade de ouvir mais: do desemprego e da fome, das ameaças constantes de “rompimento do tecido social”, da “desordem estrutural” e da “dura realidade que faz de nosso País um campeão da má distribuição de terra, renda e riqueza”. Ouviu, igualmente, conselhos (o estabelecimento de “uma política econômica que vise, em primeiro lugar, a promoção do trabalho e inclusão social”) e advertências (“os recursos públicos devem destinar-se não apenas ao pagamento dos juros da dívida pública interna e externa, mas a investimentos geradores de emprego, na cidade e no campo, e a iniciativas que atendam à exigência constitucional de erradicação da pobreza”). Na carta da CNBB, um conselho direto: “Os credores (das dívidas externa e interna) podem esperar, mas os desempregados não”. Coisas que o PT, na oposição, endossava sem pestanejar.

É sempre arriscado teorizar sobre os sentimentos de terceiros. Mas os sentimentos presidenciais pertencem a todos os brasileiros. Seria de perguntar o que Lula pensava em seu íntimo enquanto rezava inspirado por tão graves reflexões. Nem mesmo a necessidade de “urgente implementação do plano nacional de reforma agrária para criação de empregos e produção de alimentos” ficou de fora da homilia, que seguiu culpando o governo, diante do “não-cumprimento de suas metas”, pelos conflitos que se agravaram – críticas que representam, segundo o prelado, “verdade objetiva”, “fatos que aí estão” e com os quais “ele (Lula) deve concordar”.

Talvez fortalecido pela estocada (o presidente nunca escondeu seu lado religioso), pelo menos na parte objetiva de sua reação, Lula fez um mea culpa que, além de histórico, é sintomático: “Não temos mais o direito – disse diante de cerca de três mil penitentes que se apertavam na igreja – de criticar ninguém, mas o direito apenas de assumirmos as responsabilidades de transformar em realidade aquilo que nós falamos”. Uma realidade que, segundo o próprio Lula, está pior: “Antigamente tinha o pessoal com as placas nas portas das fábricas oferecendo vagas, mas hoje não tem mais, as placas desapareceram e o desemprego passa a ser um dos grandes problemas do Brasil”.

Que o pito do bispo tenha servido para alguma coisa. Os “fatos que aí estão” não recomendam outra alternativa senão essa de “continuar dialogando respeitosamente com a Igreja” e com os brasileiros todos. O mínimo anunciado é baixo, a taxa de desemprego é alta, a saúde capenga, a segurança falta… Vencedora, a esperança começa a ser vencida, embora Lula continue prometendo – como prometeu na missa – “concretizar o sonho e o desejo de milhões de mulheres e homens”. Que assim seja, amém.

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