O papel do policiamento diante do usuário de drogas

O tema drogas sempre alimenta discussões, e o debate está muito longe de acabar, pois os entendimentos e conclusões são divergentes, e não só no meio jurídico, mas também em qualquer segmento da sociedade.

Parte do entendimento científico pensa que qualquer um que se disponha a discutir o assunto relacionado às drogas, bem como propor alternativas ao sistema vigente, ou é um usuário, ou está estimulando o uso de drogas.

Nossa intenção é esclarecer à sociedade as conseqüências da utilização indevida das drogas, que trazem um prejuízo considerável ao perfeito convívio social, por atrasar a evolução da humanidade em todos os seus aspectos físicos, espirituais e morais, pois de maneira descontrolada avançam por todos os espaços geográficos, submetendo homens, mulheres, velhos e crianças, indiferentemente de etnia, classe social, classe econômica ou idade.

Discorreremos acerca de um panorama das drogas, sob a ótica da história, da medicina, da política, dos usuários e do tráfico, das nefastas conseqüências das drogas, sem qualquer tipo de rodeio.

A sociedade precisa ter ciência do mal que se trata, e participar das decisões dos poderes públicos para equacionar um problema que mata milhares de pessoas por ano, seja pelo uso, que causa sérios danos para a saúde, seja pela violência.

E, como em todo o debate a informação correta é fundamental, nada mais fundamental do que conhecermos as faces das drogas, respaldada pela nova lei de drogas lei n.º 11.343, de 23 de agosto de 2006, para que após refletirmos, chegarmos às conclusões e tomarmos alguma postura com segurança.

As drogas sempre foram utilizadas desde a antiguidade em diversas civilizações, e com várias finalidades, entre elas podemos citar a religiosa e médica, mas sem esquecermos do uso para uma fuga do mundo cotidiano e reduzir o sofrimento ou o esforço físico.

Algum desses motivos se acham na base do uso secular do ópio no oriente, da maconha em diversas regiões da ásia, e das folhas de coca, entre os índios da américa do sul.

Quando nos referimos as drogas, nos referimos a um dos maiores problemas do mundo, já que as drogas financiam os crimes, torna a vida mais perigosa, provoca cisões familiares, raças sociais (apartheid social), estimula a corrupção, abala a confiança dos povos nas autoridades, causa danos à saúde, tira o sono dos pais, gera conflitos, destrói vidas.

A proibição das drogas, na origem, deu-se ao racismo e ao controle social das minorias, muito mais do que uma preocupação com a saúde pública. Alguns países adotam a visão de que a repressão ao tráfico, reduz os danos causados pelas drogas, pois se sabe que é írrita a possibilidade de um dia nos depararmos com uma sociedade livre das drogas.

Essa é uma visão moderna, onde o mais importante é diminuir o sofrimento das pessoas e os danos à sociedade (redução dos crimes, da violência, dos danos à saúde pública, redução da ala marginal da sociedade), são metas bem mais modestas e factíveis.

Em contrapartida, a visão sanitarista, que julga o usuário de drogas como alguém que espalha essa doença social, fundamentando a proibição e contendo o alastramento das drogas, entretanto, nos países que adotaram essa política, os índices de uso aumentaram como nunca antes visto.

A sociedade brasileira está, há poucos meses sob a vigência de uma nova Lei de Drogas 11.343/2006.

O projeto que foi inicialmente apresentado no Senado, e que levou 4 anos tramitando no Congresso Nacional, foi sancionado no dia 23.agosto.2006, e revogou duas leis anteriores que tratavam do mesmo assunto: a LEI 6368/1976, instituída durante a ditadura militar e que dispunha sobre as medidas de prevenção e repressão ao tráfico e uso de drogas e substâncias ilícitas, e a LEI 10.409/2002, a chamada Lei de Entorpecentes.

Quando da vigência da Lei 6368/1976, o artigo 16, dispositivo legal que tratava do uso de drogas, e suas sanções assim dizia: Art. 16 – “Adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. PENA: detenção de 6 meses a 2 anos, e pagamento de 20 a 50 dias-multa.

Na vigência da referida lei, existia pena para o usuário de drogas, que uma vez flagrado pelo policiamento fazendo uso de drogas, era preso em flagrante delito, processado e julgado. A Lei 6368/1976 já faz parte do passado, e o temido artigo 12 e o artigo 16, ficou apenas no linguajar de usuários e traficantes de drogas.

A nova lei 11.343/2006, ora comentada, vem gerando várias discussões na doutrina e na jurisprudência, trazendo mais confusão do que realmente resultados práticos.

Essa nova lei em comento, chegou com a intenção de unir o melhor das duas leis anteriores 6.368/76 e 10.409/02, e por fim as inúmeras dissensões que pairavam sobre o tema; no entanto, mais uma vez o nosso legislador cometeu mais erros do que acertos na elaboração da lei.

Tentaremos, trazer uma forma didática, dentro do possível, neste seminário, uma melhor explanação sobre um tema que já gera discussões e dúvidas na doutrina e jurisprudência, e que é um prato cheio para os operadores da lei.

Não iremos nos alongar na questão da política criminal adotada pela Lei 11.343/06, pois isso é uma questão de cunho único e de diretrizes que a sociedade, por meio dos seus representantes no Congresso Nacional, devem tomar.

Mas não podemos nos furtar a tecermos comentários a respeito da quase abolitio criminis da conduta dos usuários de drogas ilícitas adotada na lei, em seu artigo 28 e seus parágrafos e sanções (se é que podemos chamar essas penas de sanções). Parece-nos que o legislador não se deu conta de que o problema das drogas não é uma via de mão única, mas sim de mão dupla.

Queremos dizer com isto que não basta quase legalizar o consumo de drogas para terminar o problema, porque, do outro lado dessa via, está o traficante, que tem o seu público, qual seja, o usuário, agora sem apenamento algum que o faça pensar duas vezes em adquirir ou não drogas para o seu consumo.

Quero lembrar também que reconheço que o uso das drogas é sim uma doença, mas com certeza, deixar de punir o usuário, não é o melhor caminho, pois já ouvimos, diversas vezes, que psicólogos e psiquiatras que estudam o tema, que “nem sempre podemos curar essa doença com amor, pois com essa doença até o amor em demasia pode matar”.

Não adianta não proibir e fingir que, assim, tudo se resolve, porquanto os traficantes se irão, com certeza, valer disso para fazer da vida desses usuários um inferno ainda maior, só que agora com o auxílio do Estado.

Passaremos agora no tema que mais nos interessa o Direito Penal, e passaremos a verificar as alterações das leis revogadas com a nova lei 11.343/06, tentando traçar um paralelo crítico entre elas.

Cremos que a maior divergência da doutrina e da jurisprudência no início da aplicação da nova lei se divide em duas correntes: a primeira, no sentido de que houve uma descriminalização por parte da nova lei em relação a conduta do usuário; E a segunda, no sentido de que não ocorreu a descriminalização dessa conduta. Adianto que me filio à segunda corrente.

Embora seja inegável notar que o legislador, ao criar a lei 11.343/06, dedicou sua total atenção no sentido de abrandar a pena do usuário, não podemos concordar ter havido uma descriminalização da conduta.

O professor Luiz Flávio Gomes, defende a corrente que afirma ter ocorrido a total descriminalização da conduta do usuário no nosso ordenamento. Seu pensamento se expressa no artigo “Nova lei de tóxicos: descriminalização de posse de drogas para o consumo pessoal”.

Segundo ele, tal conduta seria um ato ilícito, porém não penal, e sim “sui generis”, concluindo, com a afirmação de que não é ilícito penal, é apenas um ilícito sui generis.

Peço vênia para discordar do renomado jurista, que quando dos bancos escolares, aprendemos no passado, com outro grande jurista, professor Mário Cezar Monteiro, que em direito, quando não se sabe muito bem a função do instituto, dizemos sempre que ele é sui generis; é, na verdade, um nome pomposo para não definir nada.

Este grande mestre não se deteve apenas em batizar o instituto, também fundamentou a sua idéia para chegar a essa conclusão, com base no artigo 1.º da lei de introdução do Código Penal, que diz: “Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativamente ou cumulativamente com a pena de multa”; Por fim conclui; No Brasil, se legalmente crime é a infração penal punida com reclusão ou detenção (quer isolada ou cumulativamente ou alternativamente com multa), não há dúvida que a posse de droga para consumo pessoal (de acordo com a nova lei 11.343/2006) deixou de ser crime porque as sanções impostas para essa conduta (advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas educativos), previstas no artigo 28, não conduzem a nenhum tipo de prisão.

Em outras palavras, a nova lei de tóxicos, no seu art. 28, descriminalizou a conduta de posse de droga para consumo pessoal. Retirou-lhe a etiqueta de “infração penal” porque de modo algum permite a pena de prisão. E sem pena de prisão não se pode admitir a existência de infração “penal” no nosso país.

Corro o risco de discordar do grande mestre. Deixo claro que concordo que houve um “alívio” na sanção imposta ao usuário de drogas, chegando quase a linha tênue que separa o Direito Penal dos outros ramos do Direito.

Mas dizer que uma a descriminalização, acho um exagero. O que ocorreu realmente, foi uma adoção de novos valores de condutas, com base em nova política criminal.

Existem outros fundamentos na própria lei 11.343/2006 para afirmar nossa posição, como a existência do artigo 28, que trata dos crimes e das penas, o que, por si só, já demonstra a idéia do legislador em não descriminalizar tais condutas.

O art. 16 da lei 6368/76 deu lugar ao art. 28 da lei 11.343/2006 e seus parágrafos. A primeira vista, nota-se mudança da expressão do art. 16, que era “para uso próprio”, e, no atual art. 28, temos “para consumo pessoal”, que, em nosso entender, não inovou em nada a conduta típica.

Bem como a introdução de mais de um núcleo no tipo, que diz “tiver em depósito” aqui sim uma mudança significativa, pois, no passado, essa conduta de ter em depósito era exclusiva da conduta de tráfico, e não do usuário.

A última alteração foi a introdução de mais de um verbo no tipo do art. 28, qual seja “transportar”, que não existia no art. 16 da antiga lei. O verbo transportar era exclusivo da conduta de traficantes.

Como se pode verificar, o legislador, com essas simples introduções de mais alguns núcleos no tipo relativos ao usuário, flexibilizou, e muito, as condutas que eram próprias dos traficantes, sendo agora também estendidas aos usuários, dificultando, em tese, a tipificação de condutas que se encontravam limítrofes entre o traficante e o usuário.

Outra mudança significativa, e ao meu ver acertada, foi a introdução do § 1.º do art. 28, no qual o legislador criou mais um tipo, que também ao qual, tais condutas pertenciam exclusivamente para os traficantes, que é “semeia”, “cultiva” e “colhe” plantas destinadas a produção de drogas, porém com uma ressalva: “de pequena quantidade de substância”.

Essa alteração surge para acabar com discussões sobre agentes que possuíam, nas suas residências, vasos com plantas capazes de produzir substâncias ilícitas. Andou bem o legislador nesse sentido, pois não havia razão de se imputar uma conduta de traficante a quem só possuía um pequeno vaso com plantas em casa.

No § 2.º, o legislador perdeu uma ótima oportunidade de definir a conduta de usuário e, assim, trazer mais tranqüilidade ao aplicador da lei. O legislador mais uma vez se omitiu, não trazendo nenhuma novidade, repetindo basicamente o art. 37 de lei 6368/76.

Já no § 6.º do art. 28 da lei 11.343/06, verificamos algo bastante peculiar dessa lei. Percebe-se que o legislador ficou bastante preocupado com a brandura das penas aplicadas no caput e seus incisos, providenciando uma garantia para o seu cumprimento, não obstante, a nosso ver, essa garantia deveria ser mais severa, mais dura ao usuário.

Mas não é o que parece, senão vejamos: ao analisarmos as penas dos incisos I, II e III do art. 28, verificamos que essas são mais gravosas do que as penas aplicadas pelo seu não cumprimento, o que nos leva a crer que todo usuário irá preferir não cumprir as penas dos incisos do caput do art. 28 na esperança de sair com uma pena mais branda, como a “admoestação”, em outras palavras, bronca do juiz, ou multa.

Na maioria das vezes a pena de multa não causa grandes prejuízos, pois em 90% dos casos é sempre o usuário pobre que responde pelo crime de uso, o que é uma grande injustiça.

Já se, por muito azar, o usuário for de família de classe média ou alta, também não haverá grandes problemas, uma vez que ele poderá pagar a multa sem maiores danos, ou se preferir não pagar, não haverá problema algum, uma vez que não se pode transformar, em hipótese alguma, a conversão da multa em prisão.

Com isso, lembramos, que na nova lei o legislador dedicou inteiramente o capitulo III (dos crimes e das penas) ao usuário, mostrando, mais uma vez, a intenção dessa lei em amparar o usuário, fato que não ocorria na lei 6368/76, porque, nesta, o antigo legislador englobava em um único capítulo tanto o traficante como o usuário.

Por fim, concluo dizendo que existe algo realmente estranho no artigo 28 da lei 11.343/06, pois como bem apresentado neste post, o uso de substâncias psicoativas ainda está configurado como “injusto penal”, ou seja, crime.

De forma como o apresentado, o artigo 28 explicita certa incoerência, pois criminaliza sem exatamente punir. Expressa um evidente mas ainda tímido reconhecimento da falência do modelo repressivo como estratégia eficaz de combate ao uso de substâncias psicoativas na sociedade. O resultado é uma nova lei (ainda) antidrogas, que continua criminalizando (agora disfarçadamente) o usuário.

Por fim, concluo, o uso de drogas deixou de ser problema de Polícia e voltou a ser uma questão de saúde pública.

Jorge Miguel Piloto Netto é advogado criminalista, membro fundador da Apacrimi, assessor jurídico da SAM – Secretaria Antidrogas do Município de Curitiba.
jorgepiloto@jorgepiloto.adv.br

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