Breves considerações sobre o artigo 9º da Lei 10.684/2003

Marcus Vinicius de Viveiros Dias e Jefferson Douglas Soares

A Lei 10.684, de 30 de maio de 2003, ao disciplinar uma nova opção de parcelamento dos débitos na esfera federal, trouxe algumas “inovações” na área penal.

O artigo 9.º da supracitada lei disciplinou sobre as conseqüências penais do parcelamento das dívidas existentes, oriundas de tributos da União.

O presente estudo analisará de forma sucinta a parte penal e processual penal da lei supramencionada, pois ela foi taxativa em afirmar que:

“Art. 9.º É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1.º e 2.º da Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.

§ 1.º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.

§ 2.º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios”.

Uma simples leitura do dispositivo legal nos mostra que o parcelamento dos débitos implicará na suspensão da pretensão punitiva do Estado, bem como do prazo prescricional, sendo que sobre o pagamento integral discorreremos mais adiante.

Diferentemente de outras leis, que expressamente ressalvam os efeitos penais, ora do pagamento, ora do parcelamento, feitos antes do recebimento da denúncia, a presente lei não fez nenhuma distinção, sobre o momento da opção do parcelamento, e nem restringiu a aplicação desse dispositivo ao parcelamento regulado especificamente por esse diploma. Contudo, cremos que diante de uma interpretação sistemática da nova lei, o artigo 9.º somente terá incidência para os parcelamentos por ela regidos.

Recebida à denúncia, o acusado poderá se valer do parcelamento em qualquer momento processual, e, inclusive após a prolação da sentença, pois a lei não distinguiu essas hipóteses, somente disciplinando a extinção da punibilidade, bem como a suspensão da pretensão punitiva. Destarte, impende a pergunta: caso o réu parcele ou quite o débito, após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, poderia o apenado se usar da suspensão da pretensão executória? Entendemos que a resposta é negativa, porquanto o caput do artigo 9.º faz expressão ao vocábulo da “suspensão da pretensão punitiva”, entendo-se que foi fixado um termo final para a opção do parcelamento ou do pagamento dos débitos, qual seja, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Temos que nos atentar que o § 2.º do artigo 5.º foi vetado pelo Presidente da República, não se admitindo, nos termos dessa lei, o parcelamento de débitos oriundos do não repasse das contribuições sociais retidas pelo empregador ou tomador de serviços. Logo a menção feita no caput do artigo 9.º relativa ao tipo penal previsto no artigo 168-A do Código Penal, deu-se em razão de técnica legislativa, já que o nosso ordenamento jurídico impede a figura do veto parcial (artigo 66, § 2.º da Constituição Federal).

Outra questão que merece destaque é o fato do artigo 9.º, somente incidir sobre os tributos pertencentes a União.

Antes do advento dessa lei, com fundamento no disposto no artigo 34 da Lei 9.249/95, tínhamos três correntes sobre os efeitos do parcelamento do débito, feito antes do recebimento da denúncia. Para responder a vexata quaestio tínhamos uma corrente mais liberal, sendo que eventual parcelamento do débito equivaleria ao pagamento, acarretando, assim, a extinção da punibilidade. Outros entendiam, como nós, que o simples parcelamento não seria pagamento, sendo necessário para a decretação da extinção da punibilidade, o pagamento integral do débito. Uma terceira corrente, apoiada em um acórdão do Superior Tribunal de Justiça (6.º Turma, RHC n.º 3.973-6/RS, rel. Min. Vicente Cernicchiaro, DJU de 15/maio/1995, p. 13446), afirma que o parcelamento impede o recebimento da denúncia, ficando a extinção da punibilidade na dependência da quitação integral do débito.

É oportuno lembrar que antes da vigência dessa lei, o parcelamento só teria efeitos, se ocorresse necessariamente antes do recebimento da denúncia, pois do contrário não prejudicaria em nada a pretensão punitiva. O mesmo raciocínio vale também para o pagamento, sendo integral, feito antes do recebimento da denúncia.

A novatio legis ao disciplinar o tema, pôs fim à celeuma jurídica existente, no tocante aos crimes previstos no artigo 1.º e 2.º da Lei 8.137/90 e 337-A do Código Penal. Relativamente aos crimes previstos no artigo 168-A do Código Penal, no artigo 3.º da Lei 8.137/90, bem como outros parcelamentos feitos fora dos moldes da atual lei e tributos originários das esferas estaduais e municipais, as três correntes acima citadas subsistem.

Uma vez efetuado o parcelamento, com a conseqüente suspensão da pretensão punitiva e do prazo prescricional, a extinção da punibilidade só ocorrerá com o pagamento integral do débito, isto é, com o adimplemento total e regular do avençado no parcelamento.

Cabe aduzir que mesmo a pessoa física podendo parcelar seus débitos, obedecendo ao disposto nesse diploma, não poderá fazer jus aos benefícios previstos no artigo 9.º, pois a lei só se refere a pessoas jurídicas, não estendendo os seus efeitos para as pessoas físicas.

Por ser novatio legis in mellius, os seus termos devem retroagir, favorecendo o acusado.

Concomitantemente com as inovações trazidas por essa lei, temos o artigo 34 da Lei 9.249/95, bem como as disposições do Código Penal e da lei que institui o Programa de Recuperação Fiscal (Refis – Lei 9.964/2000), que versam sobre o tema em análise.

O artigo 34 da Lei 9.249/95, assim disciplina a matéria:

“Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei n.º 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei n.º 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia”.

Como não houve uma revogação expressa pela nova lei, todos os dispositivos anteriormente citados, continuam em vigor, devendo o intérprete e aplicador da lei, no caso concreto, fazer a correta interpretação dos dispositivos legais.

Não temos dúvidas em afirmar que o artigo 9.º da lei em baila, ou melhor, sua parte penal e processual penal é inconstitucional. A uma, porque foi originária da conversão da medida provisória n.º 107/2003, sendo certo que o artigo 62 da Constituição Federal, em seu parágrafo 1.º, inciso I, alínea “b”, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. º32/2001, veda expressamente a utilização de medida provisória para legislar sobre direito penal e processual penal. A duas, porque viola frontalmente o princípio da isonomia e da razoabilidade, consagrados na Lei Fundamental, em seu artigo 5.º caput e inciso LIV, já que a lei enfocada concede inúmeros benefícios para devedores de tributos federais, não estendendo tal benesse para os inadimplentes de tributos estaduais e municipais.

Ora, suponhamos que um representante legal de uma empresa, devedora de Cofins pague integralmente o tributo na data do interrogatório. Com essa atitude sua punibilidade estaria extinta, com base no § 2.º do artigo 9.º da lei ora em comento. Se esse mesmo representante legal pagasse o ICMS devido pela empresa na data do interrogatório, na melhor das hipóteses, seria beneficiado por uma circunstância atenuante, prevista no artigo 65, III, “b”, do Código Penal. Assim, o legislador em uma única lei conseguir incidir em uma inconstitucionalidade formal (questão da medida provisória) e material (quando desrespeitou os dogmas da isonomia e da razoabilidade).

Diante do exposto, podemos extrair as seguintes conclusões:

1 – para quem entende que o artigo 9.º da lei em tela é constitucional.

a) o parcelamento e pagamento dos débitos só valem para os crimes definidos nos artigos 1.º e 2.º da Lei 8.137/90 e no artigo 337-A do Código Penal, devendo se feito por pessoa jurídica, em relação a débitos federais, nos moldes dessa legislação.

b) o artigo 168-A do Código Penal não sofreu qualquer alteração, tendo em vista o veto do § 2.º do artigo 5.º da lei enfocada.

c) o termo máximo para se efetuar o parcelamento ou pagamento dos débitos tributários é o transito em julgado da sentença penal condenatória, já que o caput do artigo 9.º usa o vocábulo “suspensão da pretensão punitiva”, sendo que depois do trânsito em julgado nasce para o Estado a pretensão executória da pena imposta, não se falando mais em pretensão punitiva.

d) o artigo 34 da Lei 9.249/95 foi derrogado, vigendo agora nas hipóteses dos crimes previstos no artigo 168-A do Código Penal, no artigo 3.º da Lei 8.137/90, bem como para outros parcelamentos feitos fora dos moldes da atual lei e tributos originários das esferas estaduais e municipais.

e) os §§ 2.º e 3.º do artigo 168-A do Código Penal continuam em vigor, podendo ser utilizado, conforme nosso entendimento, o artigo 34 da Lei 9.249/95, no caso do agente efetuar o pagamento integral do débito, mesmo depois de iniciada a ação fiscal, mas sempre antes do recebimento da denúncia.

f) o § 1.º do artigo 337-A do Código Penal foi revogado pelo § 2.º do artigo 9.º da Lei 10.684/2003.

g)por ser novatio legis in mellius, os termos da nov lei, devem retroagir, favorecendo o acusado.

h) as disposições constantes na lei 9.964/2000 (Refis) continuam em vigor, respeitando os preceitos da referida lei.

2 – para quem entende, como nós, que a referida lei é inconstitucional, perde o sentido todos os comentários acima expostos, tendo em vista que a inconstitucionalidade da lei, não trará qualquer alteração na legislação ora vigente.

Por derradeiro, cumpre salientar, que o legislador andou muito mal, em não fixar um termo final para o parcelamento e pagamento dos débitos tributários, abrangidos por essa lei e por continuar, mais do que nunca, utilizando o Direito Penal como instrumento de coerção para cobrança de dívida ativa do Poder Público. O Direito Penal é o instituto de preservação e da tutela dos bens e valores indisponíveis, não devendo ser invocado, quando as questões em jogo refletirem direitos disponíveis.

Cabe ressaltar, ainda, que o presente artigo tem por finalidade apenas colocar o tema para futuros debates e possíveis críticas.

Marcus Vinicius de Viveiros Dias é procurador da República.Jefferson Douglas Soares é estagiário do Ministério Público Federal.

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