O novo debate

O Brasil tem um bom índice de analfabetos. Dizem as estatísticas mais recentes que pelo menos 11,8% dos brasileiros não sabem nem ler, nem escrever. Há, depois, um bom percentual que fica entre o saber e o não saber, já que a definição de analfabeto é um pouco complicada. Há quem diga que nem todos os que não sabem escrever são analfabetos. De igual forma, existem pessoas que escrevem e lêem e nem por isso seriam classificadas como alfabetizadas. Somar, subtrair, multiplicar ou dividir, mesmo contando nos dedos, também são indicativos da sabedoria básica de qualquer vivente.

A Justiça Eleitoral resolveu, nesta eleição municipal cujo processo já foi iniciado, levar a sério o que diz a lei. Pelo artigo 14 da Constituição, analfabetos podem votar. Mas não podem ser votados. Por isso, no ato de registro da candidatura, aspirantes a prefeito ou a vereador precisam apresentar um comprovante de escolaridade. O mínimo – do ensino fundamental. Quem não apresenta o documento por qualquer motivo, é instado a provar que sabe ler e escrever. Apenas alegar autodidatismo não vale. Na dúvida (ou na impugnação da candidatura por parte de concorrentes), convencionou-se pela realização de uma prova, teste ou “provão para candidatos”.

Em estados como Alagoas, Bahia, Mato Grosso do Sul e mesmo no Paraná aconteceu um pouco de tudo. Teve candidato que, já eleito em anos anteriores, abandonou a carreira política com medo do vexame maior. Ser taxado de analfabeto dói. Outros, recorreram a expedientes no mínimo curiosos para justificar a falta de documento de escolaridade, tentando fugir da prova. Em algumas regiões do País, verdadeiras caravanas foram organizadas pelos partidos que, além do transporte, colocaram à disposição dos candidatos uma espécie de “cursinho” pré-vestibular. Mesmo assim, alguns não tiveram sucesso e alegaram extremo nervosismo, reivindicando uma segunda chance.

O fato suscitou debate. Quase nenhum partido político defende abertamente a iniciativa da Justiça Eleitoral, escudada na Carta Magna. E dentro da própria Justiça há quem discorde dos métodos usados. Ou do rigor empregado nos testes de ditado, interpretação de texto e demonstração de conhecimento das quatro operações básicas de matemática. O ministro aposentado Fernando Neves, responsável pelas instruções do Tribunal Superior Eleitoral – TSE para as eleições deste ano, é um dos que se manifestaram contra a moda do provão para candidatos. O presidente interino do mesmo tribunal, Geraldo Grossi, também. “Virou uma festinha, no sentido de ridicularizar a pessoa” – disse ele. “Me parece – acrescentou – uma coisa humilhante.” Pois “a pessoa não tem vocação para o analfabetismo, é a sua condição social”, sentencia o magistrado, ensinando que “o ideal seria que os analfabetos pudessem votar e ser votados”.

O presidente Lula – hoje doutor honoris causa em diversas universidades – chegou ao poder sem ter curso superior. E tirou proveito disso. Um prefeito também poderia fazer o mesmo, assim como um vereador, não é verdade? Grossi acha que se um vereador ou um prefeito precisar de uma leitura (algo como o texto da Lei de Responsabilidade Fiscal), alguém pode fazer isso para ele. Completamos: a assinatura pode ser na forma de cruz, ou com as impressões digitais. Na verdade, assinar nem sempre é tudo. Há quem assine e depois negue. Modernamente, daria para captar digitalmente também a íris do vereador discursante ou apresentante de algum projeto de forma verbal. Dar nome de rua não é coisa que exija muita prática. Basta, como se diz, “vontade política”.

De vereador a deputado é um pulo. Daí a governador, outro. Para o Senado, basta muito voto na urna em troca de oito anos de descanso. O eleitor é quem manda. Qual a violência maior: a da sociedade que nega oportunidades de alfabetização a milhares, ou a norma constitucional que pretende impedir que alguém chegue ao poder sem saber somar, contar ou escrever? Este novo debate parece um pouco intempestivo para o limiar do século em que vivemos. Mas está posto e está tirando o sono de muita gente. No Ceará, por exemplo, dizem que ameaça – ai de nós! – 50% dos candidatos já na estrada pedindo votos.

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