Luis Otávio Sales

O habeas corpus e o mito da supressão de instância

É uma impropriedade técnica o entendimento jurisprudencial de tribunais de segunda instância (Tribunais Regionais Federais e Tribunais dos Estados e do Distrito Federal) de que não se conhece de habeas corpus cuja tese não tenha sido submetida ao crivo da autoridade coatora de primeiro grau (aparente supressão de instância).

É categórico o preceito constitucional segundo o qual (CF, art. 5.º, LXVIII) “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;”.

Tecnicamente, habeas corpus não é recurso, embora esteja tratado no capítulo “dos Recurso em geral” do Código de Processo Penal (arts. 647 a 667). O writ é ação autônoma de impugnação originária(1).

“Habeas-corpus não é recurso; habeas-corpus é ação: a ação de habeas-corpus supõe a pretensão ao habeas-corpus, a tutela jurídica (pré-processual) e exerce-se como “ação’ de ritmo legalmente estabelecido”(2).

Não se submete ao princípio do duplo grau de jurisdição (salvo quando veiculado sob a forma de Recurso Ordinário Lei n.º 8.038/90 , perante STJ ou STF, ou Recurso em Sentido Estrito  art. 581, X, CPP) e, portanto, não se pode exigir prequestionamento na instância inferior.

Por meio do remédio heróico não há reexame, mas sim, exame da coação ilegal; quem dele conhece, é o primeiro a fazê-lo, em relação à autoridade apontada como coatora.

A exigência de provocação anterior da autoridade coatora de primeiro grau é proposta equivocada, não só porque viola o princípio do devido processo legal (não há nenhum dispositivo legal que o preveja), mas, também, porque mitiga uma garantia constitucional cogente.

Há de se ter presente a regra de hermenêutica e aplicação do Direito, segundo a qual “onde o legislador não distingue não cabe ao intérprete fazê-lo”, muito menos para relativizar uma garantia constitucional.

Como o habeas corpus é o meio do qual dispõe alguém que sofre coação em sua liberdade, por ilegalidade ou abuso de poder, não é coerente que do paciente se exija a cautela de provocar o responsável por lhe infligir o mal para que se pronuncie como pressuposto para discutir o constrangimento em instância imediatamente superior.

O art. 654, § 2.º, do CPP prevê muito claramente que os “juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.” Se o tribunal pode agir de ofício, é irrelevante, para a análise do writ, prévia provocação da autoridade que causou o constrangimento.

Enfim, o suposto requisito em destaque para o conhecimento desse remédio heróico nos tribunais de segunda instância consubstancia um evidente paradoxo: exige pressuposto tipicamente recursal para uma ação que é genuinamente originária.

Ou melhor, estipula efeito devolutivo em mecanismo constitucional cuja proposta não é reexaminar uma decisão adstrita aos seus próprios fundamentos, mas sim, analisar autônoma, originária e amplamente a legalidade do constrangimento imposto por autoridade imediatamente inferior.

O mesmo raciocínio vale para as ações de habeas corpus impetradas perante os tribunais superiores (STF; STJ; TST; TSE e STM) quando o ato coator emana inauguralmente de tribunal inferior: não se cogita de supressão de instância para efeito de não se conhecer do writ, caso a corte de origem não tenha se manifestado acerca da tese nele veiculada.

Notas:

(1)  Pacelli de Oliveira, Eugênio; Fischer, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 1426.
(2)  Pontes de Miranda. História e Prática do Habeas-Corpus. 8.ª ed. 2v. São Paulo,: Saraiva, 1979, p.4

Luis Otávio Sales é advogado. www.dotti.adv.br

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