O futuro de nosso presente

Vive-se momento ímpar para pensar sobre a exclusão social, direitos subjetivos fundamentais e o sistema jurídico. Sabe-se que a atribuição de uma posição jurídica depende do ingresso da pessoa no universo de titularidades que o próprio sistema define. Desse modo, percebe-se claramente que o sistema jurídico pode ser, antes de tudo, um sistema de exclusão.

Essa exclusão se opera em relação a pessoas ou situações às quais a porta de entrada na moldura das titularidades de direitos e deveres é negada. Tal negativa, emergente da força preconceituosa e estigmatizante dos valores culturais dominantes em cada época, alicerça-se num juízo de valor depreciativo, historicamente atrasado e equivocado.

Assim já se passou em diversas hipóteses. Para ficar em dois exemplos, basta lembrar dos séculos que o sistema jurídico embalou com formas diferentes de redução da mulher a um ser menor. O traço de exclusão da condição feminina marcou o patriarcado e fundou um padrão familiar sob a lei da desigualdade.

Do mesmo modo, os filhos tidos fora do casamento foram excluídos da cidadania jurídica, pois embora filhos eram, no sentido natural, direito algum tinham em homenagem à “paz e a honra” das famílias matrimonializadas. Segredos conservavam uma decência aparente da família e instituíam a “mentira jurídica”.

Por isso, a presença dessas pessoas no Direito é, a rigor, a história de uma ausência. O que se nega não se denega apenas à mulher, em especial à mulher não casada, ou aos filhos que na linguagem discriminatória eram tidos como ilegítimos ou bastardos. Diversos sujeitos são propositadamente colocados à margem do sistema jurídico, inseridos no elenco daqueles que não portam convites ao ingresso das titularidades de direitos e obrigações.

Assentada no sentido clássico da família monolítica e autoritária, hierarquizada e transpessoal, a norma jurídica resta servindo, nessa dimensão, de instrumento para dedicar capítulos inferiores a sujeitos naturais que não passam ao estatuto de efetivos sujeitos de direito. Esse regime de exclusão se funda num assento tripartite que une sexo, sangue e família, e propicia que as formulações jurídicas privadas modelem as relações de direitos e de parentesco à luz dos efeitos dessas regras de desqualificação.

Dispositivos jurídicos civis e penais alicerçam esse conjunto de regras de redução e discriminação, revelando que os códigos são moldados para atender, numa suposta e inexistente neutralidade técnica ou científica, as fronteiras da vida privada.

Por isso mesmo, o sistema jurídico, cioso de seus mecanismos de controle, estabelece, desde logo, com o nascimento, uma identidade sexual, teoricamente imutável e una. Essa rigidez não leva em conta dimensões outras, também relevantes, no plano das questões sociais e psicológicas. Desse modo, o papel de gênero se apresenta como uma expressão pública dessa identidade. O atestado do nascimento é, dessa forma, um registro do ingresso da pessoa no universo jurídico, disposto conferir segurança e estabilidade nas relações jurídicas.

O registro civil exerce, nesse plano, uma chancela normalmente imodificável, que marca o indivíduo em sua vida social. É um sinal uniforme e monolítico, às vezes incapaz de compreender a pluralidade psicossomática das pessoas.

Entretanto, como os fatos acabam se impondo perante o Direito e a realidade acaba desmentindo esses mesmos códigos, mudanças e circunstâncias mais recentes tem contribuído para dissolver a “névoa de hipocrisia” que encobre a negação de efeitos jurídicos. Tais transformações decorrem, dentre outras razões, da alteração da razão de ser das relações familiares, que passam agora a dar origem a um berço de afeto, solidariedade e mútua constituição de uma história em comum.

Nessa via, o transcurso da história vai fazendo presente a afirmação (em boa parte discutível) segundo a qual ninguém, a rigor, nasce sujeito de direito, mas se torna um sujeito de direito, mostrando o caráter do processo em curso na edificação de uma concepção jurídica que vá ao encontro da identidade dos novos sujeitos e das situações até então colocadas à margem.

Nesse caminho, é inevitável o choque com resistências diversas precisamente porque nos textos legais, do novo Código Civil ao Código Penal, a sociedade deposita aquilo que lhe parece ser a sua própria identidade. Impende arrostar os paradoxos e questões instigantes que inauguram o século XXI e nuançam, desde já, grandes desafios.

Luiz Edson Fachin

é professor titular de Direito Civil da UFPR; diretor da Faculdade de Direito da UFPR; conselheiro da OAB/PR; membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas, do Instituto dos Advogados do Paraná, do IAB, do IBDFAM, e da International Society of Family Law; autor, entre outras, da obra “Da paternidade: relação biológica e afetiva” (Ed. DEL REY, 1996, 260 p.).

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