O fingimento na política

De onde vem esse ar de esculhambação geral que se observa na paisagem brasileira, especialmente na arena política? Parte se origina nos traços culturais do caráter nacional, que junta parcela de dispersão à afoiteza e fortes doses de intuição a um fingimento que, na política, é muito comum quando um político cumprimenta uma pessoa dando tapinhas nas costas, enquanto pisca matreiramente para outra. A postura é a de alguém que quer abraçar o mundo, tirar partido de tudo e de todos, ou, ainda, acender uma vela a Deus e a outra ao diabo.

Em termos de fingimento, é exemplar a historinha envolvendo Magalhães Pinto (UDN) e Tancredo Neves (PSD). Ao se encontrarem numa estrada, em Minas, Magalhães quis saber de Tancredo se ia para Lafaiete ou Barbacena. “Vou para Barbacena”. “Ah, raciocinou o careca lustroso, Tancredo diz que vai para Barbacena para que eu pense que vai a Lafaiete, mas ele vai mesmo é para Barbacena”. A tática, conhecida como engano de segundo grau, expressa um jogo de soma zero, que envolve a sagacidade de um e a malandragem de outro. O que eles querem dizer é isso: “quando você pensa que está indo, eu já estou voltando”.

A esperteza não se restringe aos atores políticos. Faz parte do cotidiano dos eleitores, principalmente daqueles de baixo poder aquisitivo que habitam os fundões do país. As correntes fisiológicas ainda pesam forte na balança eleitoral, chegando a ultrapassar 25% do eleitorado. De certa forma, trata-se de remanescentes da cultura do apadrinhamento, ainda bem acentuada nas regiões norte, nordeste e centro-oeste, além de redutos periféricos das metrópoles acostumados às práticas clientelistas. “Quem tem padrinho, não morre pagão”, é a voz corrente nos currais eleitorais. “Para os amigos, pão, para os inimigos, pau”, tende a pensar certa linhagem de caciques regionais.

Os comportamentos políticos, tanto de representantes quanto de representados, fazem parte da cultura de infração de normas, cuja origem está nos primeiros passos da colonização brasileira. A inversão de valores, a lei do patrão como norma absoluta, a dispersão das comunidades ao longo do litoral e a conquista de vastos espaços do Interior acentuaram, ao longo de nossa história, a predominância da cultura personalista. A ordem pessoal tornou-se mais importante que a ordem coletiva. É fato que ainda hoje esse traço se mantém presente na ordem institucional. Trata-se, de certa forma, da expressão de uma estrutura social fragmentada, dispersa, pulverizada em núcleos patriarcais que se espalham por muitos cantos.

Hoje, o reflexo desses traços aparece na fulanização política. Os partidos brasileiros têm menos importância que seus líderes. Tornaram-se emasculados, fundiram suas identidades, com a perda de substância doutrinária, imbricando-se a ponto de se ver, nesse momento, um conluio esquisito entre PT e PL, como se fossem água do mesmo poço. A social democracia passou a ser um espaçoso buraco no centro da galáxia política para abrigar não apenas tradicionais participantes, mas liberais de designações e conotações variadas, ex-socialistas revolucionários e comunistas históricos, que, ante a derrocada da utopia marxista, tiveram de se recolher em espaços mais aconchegantes e aceitáveis pela sociedade.

A clonagem na cultura política chega, nas vésperas do maior pleito de nossa história republicana, ao seu mais adiantado grau de sofisticação. Agora, é o PT que desce da cavalgadura ética em que esteve montado, nas últimas campanhas, para assumir a condição de partido assemelhado à outras entidades partidárias, acuado que está ante as denúncias de corrupção e esquema de caixa dois em Santo André, São Paulo. Diante da grave acusação, nenhum partido pode assumir perfil de vestal. A limpeza ética que tanto se cobra na política deixa de ser discurso exclusivo do PT.

Qual a postura do eleitor ante esse quadro? É a de distanciamento e observação. Ele não tem motivos para querer melhorar. Diariamente, a mídia coloca para sua análise o cardápio com os pratos repetidos da violência indiscriminada e o poder paralelo dos grupos organizados e armados; as negociações políticas envolvendo as alianças inter-partidárias, temperadas com os caldos fisiológicos regionais; a corrupção em todas as esferas públicas; a inação do poder judiciário, ante o clamor da população por uma justiça cada vez mais lenta; a fulanização política ocupando espaços partidários, em frontal infração à legislação, aumentando a sensação do estado de anomia em que vive o país.

Uma imensa confusão mental toma conta do eleitor. Que, desencantado, vai corroborando o pensamento de que somos a mais destacada sociedade entre, pelo menos quatro tipos conhecidos: a inglesa, a mais civilizada, onde tudo é permitido, salvo aquilo que é proibido; a alemã, onde tudo é proibido, exceto aquilo que é permitido; a totalitária, onde tudo é proibido, mesmo aquilo que é permitido e, claro, a brasileira, onde tudo é permitido, mesmo aquilo que é proibido.

  • Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail:gautorq@gtmarketing.com.br  

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