O discurso de Guaiaquil

O discurso que o presidente Fernando Henrique Cardoso fez em Guaiaquil, no Equador, durante a 2.ª Reunião de Presidentes da América do Sul, precisa ser levado na devida conta por representar um grito que resume, mais ou menos, o principal problema (e o principal alerta) dos países todos dessa parte do novo mundo encurralado pelas vicissitudes da economia global: o comportamento danoso dos mercados financeiros que, precipitados, destroem em horas ou dias o que se levou anos para construir.

Tire-se o tom melancólico de quem já se está despedindo do governo. Tire-se também tudo quanto se refira à situação especificamente brasileira, com as eleições em curso, as promessas eleitoreiras e o fraco desempenho do candidato oficial, e mesmo assim resta uma oração que, juntada com as explicações da entrevista que a sucedeu, tem valor pelo que encerra de verdadeiro nas críticas às nações ricas e à falta de eficácia de organismos como a Organização das Nações Unidas na condição de fórum de discussão dos temas internacionais mais prementes.

Tem-se a impressão, disse FHC, de que esse diretório (a ONU) se junta para convalidar o que um só poder decidiu, E isso “não é um mundo democrático. Esse não é um mundo para o qual nos preparamos durante tantas décadas”. E afirmou: “É um mundo de unilateralismo”, a vontade de poucas e bem aquinhoadas nações prevalece sempre e em todos os setores – do militar ao comercial, do agrícola ao industrial.

De fato, se nossos erros e acertos internos são suscetíveis de críticas e oposições, a curta viseira formada não raro pelas paixões políticas domésticas não deve servir de anteparo para essa visão mais alongada a respeito da verdadeira origem de muitos de nossos mais graves problemas. Não há e não haverá equilíbrio social interno sem haver, primeiro, o mínimo equilíbrio social entre as nações divididas entre as que passam bem, muito bem, e as que passam fome. Pois, como disse o presidente, “não há mecanismos capazes de rebater certas pressões que vêm do mercado e destroem o que se levou anos para construir”.

E por “mercados” não se deve entender essa figura impessoal e sem rosto de um conglomerado de empresas multinacionais e interesses globais. Há que se responsabilizar clara e diretamente os governos das nações mais ricas, os governos “mais importantes do Norte” que não emitem sinais de abertura e, sim, “sinais de restrição”. Ali, segundo o discurso do presidente brasileiro, “se fala de integração mas se pratica a exclusão”. Sendo mais específico: se fala de integração, com a proposta de criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), mas “se põem à margem os produtos que interessam efetivamente aos países em desenvolvimento”.

Não disse o presidente, mas nem por isso passa sem lembrança, que o protecionismo comercial, que puxa a fila de outros protecionismos e dominações, representa hoje a continuação da verdadeira guerra fria que não acabou com a queda do Muro de Berlim, mas apenas metamorfoseou-se e, sem exagero algum, encerra também os fundamentos do terror que transformou o mundo do século XXI num constante pesadelo para a humanidade.

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