O direito adquirido e o interesse público

Encerrou, na última semana, o prazo para o registro das candidaturas às eleições municipais que ocorrerão em outubro próximo, sinal de que se avizinha o início da propaganda político-eleitoral. Diante disso, é mister nos prevenirmos, desde logo, contra aqueles tão famosos lemas de campanha que, pela fácil memorização e pela incessante repetição, parecem sedutores à primeira vista, mas que, num exame mais acurado, revelam-se verdadeiros modelos de publicidade enganosa.

Exemplo disso no último pleito, foi a oração, propalada como se máxima fosse, segundo a qual “não existe direito adquirido contra o interesse público”. Embora já se tenha passado quase dois anos desde então, o momento que se aproxima torna oportuno o desfazimento deste sofisma.

Invocando Gabba, Luís Roberto Barroso (Interpretação e Aplicação da Constituição, 2002) aponta, como requisitos para o surgimento do direito adquirido, ter o mesmo sido conseqüência de um fato idôneo, uma espécie de justo título, e ter se incorporado definitivamente ao patrimônio do titular. Da ocorrência destas duas condições emerge a aquisição do direito.

O respeito ao direito adquirido é imposto e assegurado pela Constituição Federal, ao averbar em seu art. 5.º, XXXVI, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Vale ressaltar que tal disposição encontra-se inscrita no Título que trata Dos Direitos e Garantias Fundamentais, consubstanciando cláusula pétrea, intangível até mesmo pelo Poder Constituinte derivado.

Do texto constitucional depreende-se que nem mesmo a lei latu sensu – incluindo-se aqui a emenda constitucional, bem como as demais espécies do gênero (art. 59 da CF) – poderá prejudicar o direito adquirido. Ora, mas o que vem a ser a lei, senão a expressão maior do que é o interesse público?!

Destarte, se até mesmo a aplicação da lei, expressão da vontade geral, encontra limites na proteção ao direito adquirido, é desarrazoado falar-se que “não existe direito adquirido contra o interesse público”, ou seja, que o interesse público pode violar o direito adquirido.

Aliás, tão desarrazoado quanto pretender violar o direito adquirido sob o pretexto de atender o interesse público, é acreditar que exista interesse público fora da lei. Como bem assevera o professor Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, 2004), “é absurdo falar-se em interesse público à margem da lei. É que o interesse público só pode realizar-se na forma da lei. Aliás, de direito, inexiste interesse público a não ser intra legem. Contra a lei ou fora dela é inconcebível”.

Nesse passo, e considerando que no âmbito das relações entre particulares a estabilidade é garantida, em geral, pela proteção ao ato jurídico perfeito, é possível afirmar-se que o direito adquirido é oponível, sobretudo, em face da lei; sobretudo, em face do Estado; sobretudo, em face do interesse público.

Diante dos elementos ora colacionados, basta o seguinte silogismo para abolir vez por todas o adágio em comento: Premissa Maior, a lei não pode violar o direito adquirido; Premissa menor, não existe interesse público à margem da lei; Conclusão, o interesse público não pode violar o direito adquirido.

O exemplo trazido é um dentre tantos que já foram elaborados e de outros que, a depender da inesgotável criatividade dos candidatos e de seus publicitários, decerto surgirão nas próximas eleições.

Urge, portanto, que a comunidade jurídica esteja atenta e afiada, pronta para identificar e tornar natimortas estas teratologias, antes que as mesmas, pelo seu muito repetir, ganhem a condição de verdades absolutas e, tal como o canto da sereia, conduzam os cidadãos em direção a um caminho de sombras, cuja volta demora longos quatro anos.

Francisco Zardo

é advogado em Curitiba, pós-graduando em Direito Administrativo.

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