O custo da ideologia

A história da humanidade tem assistido não sem pesar o custo que lhe tem causado certas idéias, que não se preocupam com a realidade. É o caso presente, da discussão em torno do direito do trabalho no Brasil. As discussões baseiam-se nas posições ideológicas dos interlocutores, que procuram, a qualquer custo, fazer do seu mundo virtual o mundo de todos nós.

O mais recente exemplo disso é o artigo “O Custo da Justiça do Trabalho”, do economista José Pastore, publicado recentemente. Baseado em dados estatísticos (reais, diga-se de passagem) e sem fazer um ataque institucional à Justiça do Trabalho e a seus membros (pelo contrário, o texto faz até um certo elogio a juízes e servidores), o renomado economista tenta demonstrar que o resultado que emerge dos números é o de que se gasta muito com a Justiça do Trabalho para dar ao trabalhador alguns direitos “banais” previstos em leis; leis que são tiradas de um “livro grosso”, a tal CLT. Assim, se estas leis não existissem, tudo se passaria como nos “países de tradição negocial”, onde as partes escolhem suas leis e elas próprias resolvem os conflitos que decorrem da aplicação dessas regras, fazendo pressupor pela sua linha de raciocínio que desse modo a Justiça do Trabalho não daria prejuízo. Portanto, conclui Pastore, é hora de reformar o direito trabalhista, para abandonar essa “legislação que `fabrica’ conflitos”.

A sua lógica, no entanto, não pode ser acatada.

Fazer um paralelo entre o custo do processo e o valor que se devolve à parte por este mesmo processo, para fins de equacionar a validade do direito material posto em discussão é, no mínimo, um descuido de argumentação. Ora, se esta lógica pudesse ser levada em consideração, então, equacionando os custos da Justiça Cível e o dinheiro que é entregue às partes nas respectivas demandas, acabaríamos, facilmente, chegando à conclusão de que se deve acabar, por exemplo, com as leis de proteção à propriedade. Senão vejamos: se o processo civil tem um custo “X” e os sem-terra constantemente invadem terras e para recuperar suas terras os proprietários são obrigados a entrar com uma ação na justiça e nenhum dinheiro ganham com isso, aliás, apenas perdem (custo do processo mais honorários advocatícios) é porque o processo é deficitário e o seu déficit decorre da existência da lei que lhes garante a posse tranqüila do bem. Assim, para acabar com o déficit do processo, acabamos com a lei… E por aí se pode caminhar em intermináveis exemplos da falácia de avaliar a eficácia do direito material a partir da equação custo-benefício do processo.

Em segundo lugar, a quantidade de ações que existe na Justiça do Trabalho, que, segundo o economista, é outro fator que torna essa equação desfavorável à Justiça do Trabalho, não se dá porque a legislação trabalhista é geradora de conflitos. Qualquer lei que não seja cumprida gera conflitos e a lei trabalhista é descumprida (e é, em geral, descumprida pelos empregadores e não pelos empregados que entram com as ações) não porque seja um fardo pesado para os empregadores, mas porque é desprovida de sanção. Se alguma crítica pode ser feita à nossa lei trabalhista é no sentido da falta de previsão de penas mais sérias (advindas do direito penal) para o seu descumprimento, como ocorre no direito francês. Na nossa realidade, já se tornou quase uma prática comum, por exemplo, a dispensa de empregados, por algumas empresas, sem o pagamento dos mínimos direitos que resultam da cessação do vínculo, obrigando este trabalhador a entrar com ação na Justiça, onde, aproveitando-se do estado de necessidade do trabalhador, decorrente do desemprego, busca-se um acordo com o trabalhador, que nada mais é que a renúncia de parte de seus direitos em troca de sobrevivência.

Em terceiro lugar, é indemonstrável, cientificamente falando, o pressuposto de que as normas coletivas regulam melhor as relações de trabalho que a lei, até porque não há, concretamente, uma experiência mundial neste sentido, para se fazer o paralelo. Os tais países de “tradição negocial” não são bom exemplo para isto, pois nos EUA apenas 10% dos trabalhadores são atingidos por normas oriundas de negociação coletiva e a Inglaterra cada vez mais se aproxima do modelo legislado das relações de trabalho.

Mas, concordo, de certa forma, que o Fórum Nacional seja um bom momento para discutir a reforma da legislação trabalhista e se é para começar uma discussão séria a respeito, e até com a preocupação exposta pelo economista de diminuir as ações que correm na justiça do trabalho, quando os ex-empregados, verdadeiramente, correm atrás de migalhas, ou de estilhaços de sua cidadania e dignidade, perdidas ao longo de décadas de política econômica oligárquica, que tal começar tirando o custo da previdência social das relações de trabalho (transferindo-o, obviamente, para outras fontes, com preocupação distributiva) e acabando com o FGTS e pondo em seu lugar a estabilidade no emprego, acompanhada de um sistema de remuneração integrado com participação nos lucros e gestão participativa da empresa? Atenderíamos, assim, os reclamos das empresas quando a um menor custo do trabalho e, naturalmente, um menor número de reclamações seriam encaminhadas à Justiça do Trabalho (que, enfim, daria lucro), ao mesmo tempo em que parte da dívida social que se tem com os trabalhadores poderia começar a ser paga.

Vamos discutir a reforma do Direito do Trabalho? Vamos, mas o façamos, então, com responsabilidade científica, porque as discussões ideológicas já custaram demais à humanidade. Esta, por exemplo, já me custou, pelo menos, uma noite de sono!

Jorge Luiz Souto Maior

é professor-associado de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP.

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