O cheque especial sem fundos e a responsabilidade civil do banco sacado pelo nexo causal ou pelo risco profissional

I – Conceitos Fundamentais sobre o Instituto

Definição legal “é toda definição enunciada pela própria lei, a fim de evitar conceitos diversos para o mesmo instituto jurídico”(1). A lei, segundo a orientação perfilhada pelo legislador pátrio, tem como regra não abusar de definições jurídicas, acolhendo como válido conhecido brocardo latino.

Para melhor abstração do que se pretende através destes modestos comentários, entretanto, ouso fornecer algumas definições extraídas de respeitáveis doutrinas ou jurisprudência sobre o cheque que, em princípio, é ordem de pagamento em dinheiro(2).

Quanto ao seu conceito, entende Vidare, que o cheque é uma ordem de pagamento direto emanada do sacador ao sacado, em cujo poder tem duma certa soma disponível de dinheiro, suficiente para pagar o montante indicado no título, pagamento que pode ser ao próprio sacador, ou à sua ordem, ou ao portador dentro do rigor cambiário(3).

É ordem de pagamento contra banco, no qual o sacador tem fundos depositados à ordem, e conta corrente, ou crédito contratado ou autorizado para girar a descoberto: o beneficiário tanto pode ser o próprio emitente, quanto terceiro, ou mesmo o sacado(4).

Não se admite o cheque de garantia. O cheque representa sempre pura e simplesmente um título de exação destinado a pagamento(5). O cheque é instrumento de exação, não de dilação. Não tem data de vencimento. É pagável no ato de apresentação, à vista, ainda que não o declare(6).

Tais afirmações lógicas vêm confirmar que o cheque pré-datado, segundo alguns, ou pós-datados segundo outros, não existe no mundo jurídico, sendo com certeza criação da fértil mentalidade brasileira, que ao instituto pretendeu – e conseguiu – dar aquele jeitinho.

Na definição de J.X. Carvalho de Mendonça é o título revestido de certas formalidades legais, contendo uma ordem de pagamento à vista, passado em favor próprio ou de terceiro, contra comerciantes, especialmente banqueiros, pela pessoa que em poder deles tem fundos disponíveis(7).

Economicamente, o cheque é uma ordem mediante a qual o passador dispõe, a proveito próprio ou de outrem, do dinheiro que tem em poder do sacado(8).

Ouso concluir, neste tópico que o conteúdo do documento em si mesmo é ordem de pagamento à vista e não promessa de pagamento que desvirtua ilegalmente o instituto, certamente numa tentativa de ludibriar o erário público no recolhimento de taxas e impostos devidos.

Dizem os tribunais: O pagamento por meio de cheque é pro solvendo e não pro soluto. O cheque não é dinheiro, de sorte que não possui força liberatória. Por isso, não sendo acolhido pelo sacado, não quita a obrigação para cujo pagamento foi emitido”(9).

II – Cheque Especial

O cheque especial, que de “especial” nada possui pois é fornecido pelas instituições bancárias de modo abusivo, sem as pesquisas necessárias sobre o conceito social do favorecido pelo contrato e de sua condição patrimonial, simplesmente porque se locupletam com polpudas comissões tanto nas devoluções quanto na oportunidade da reabilitação das contas encerradas motivando aos emitentes de cheques especiais sem fundos perpetuarem a ilicitude civil e criminal e causando enormes e irrecuperáveis prejuízos à população, é aquele pelo qual o banco contrata com o usuário a abertura de crédito rotativo em sua conta corrente e que, normalmente gera relação de consumo, assando a enquadrar-se legalmente na incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC)(10).

Registra o Aurélio – Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2.ª edição, Nova Fronteira, que cheque especial é aquele que tem cobertura máxima de saque previamente estabelecida, ainda que o emitente não tenha fundos correspondentes.

Simplesmente porque nada garantem, nada perdem, mas se locupletam cada vez mais às custas das lágrimas do correntista e do portador do cheque respectivo, sempre com a deficiência de controle do Banco Central (BACEN), os bancos se descuidam de cumprir, integralmente, as normas do mencionado órgão controlador e não analisam, salvo honrosas exceções, a seriedade dos beneficiários dessa modalidade de crédito, os quais, em sua maioria quase absoluta, não possuem patrimônio para responder pelos cheques especiais (sic) sem fundos que emitem.

Piorando a preocupação daqueles que confiam nas cártulas em questão os estabelecimentos bancários não providenciam, como lhes compete, o recolhimento das restantes folhas de cheques do talonário, tão logo encerrada a conta corrente, conforme normas do órgão controlador, que contêm orientação de ordem geral dirigida a todas as instituições bancárias sobre os assuntos delas objeto, ao ponto lamentável de algumas fornecerem outros e outros talões, perpetuando a aventura chéquica de centenas de seus clientes.

Assentados sobre a sua prepotência econômica, confiam os bancos na tese dos seus departamentos jurídicos, vezes acolhida por juizes singulares e algumas Câmaras Cíveis, de que não há culpa dos mesmos no sentido estrito, um dos pressupostos da responsabilidade civil, antes preceituada pelo Art. 159 do CC e, atualmente, pela conjugação dos artigos 186 e 927 e seu parágrafo único do vigente Código, olvidando-se, por outro lado, que a doutrina e jurisprudência moderna e mais consentânea estão analisando, com mais seriedade e cautela, as ações bancárias e seu nexo causal, ou nexo de causalidade, “um dos mais importantes temas na teoria da responsabilidade civil porque é sua definição que estabelecerá o alcance da obrigação(11).

No entender de salutar doutrina, “causa, filosófica e juridicamente, é o fato do qual deriva necessariamente o resultado”. Em outras palavras, no entender de Humberto Theodoro Júnior, é o fato sem o qual o resultado, necessariamente, não teria ocorrido.

Olvidam-se os bancos que a sua responsabilidade não é contratual e que no caso particular de concessão de créditos através de cheques especiais (?!) sem as devidas cautelas a pessoas que nada possuem, inclusive conceito social, é considerada extracontratual, objetiva (também dita aquiliana ou delitual), que na sua interpretação moral e jurídica procura evitar “enriquecimento indevido estribado no princípio maior da equidade que não permite o ganho de um em detrimento do outro, sem uma causa que o justifique”(12).

Foi categórico o E. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, pela sua 7.ª Câmara Cível, na Apelação Cível e Recurso Adesivo n.º 1.030, ao formular a seguinte,

Ementa: “Responsabilidade Civil. Responde civilmente o banco se fornece talonário a correntista inidôneo, sem a devida verificação de idoneidade, e, sendo recíproca a culpa, a indenização é devida pela metade”(13).

III – Liame de Causalidade

Antonio Lindbergh C. Montenegro, doutrina que “Bastas vezes o ordenamento jurídico impõe o dever de responder pelo dano sem que o agente tenha praticado ato culposo. Como já consignado linhas atrás, se a obrigação de indenizar independe da culpa, o ato (ou fato) deflui do exercício de um direito ou incide na órbita da responsabilidade pelo risco ou responsabilidade objetiva, Vimos também o fundamento dessa responsabilidade”(14).

Logo mais (página 48): “O nexo causal constitui dado fundamental da obrigação de ressarcir. Na verdade, onde não exista causalidade jurídica, ou seja, relação de causa e efeito entre o evento (dano) e a ação ou omissão que o produziu, não há dever de responder.”

Julgando a Apel. N.º 18.477, da Comarca de Gov. Valadares/MG, Humberto Theodoro Júnior, franco e respeitado defensor do princípio existente entre a causa e o efeito, quando Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ementou: “Sem a prova de nexo causal entre a conduta do agente e o dano sofrido pela vítima, não se pode cogitar de responsabilidade civil por ato ilícito”(15).

Pouco além (página 288), afirma o respeitado autor, em nova ementa: “Para ocorrer a responsabilidade civil não basta a ocorrência de uma situação culposa e um evento danoso. Impõe-se que entre esses dois elementos ocorra o liame de nexo causal.”

IV – Do Risco Profissional

Em objetivo, lúcido e oportuno Parecer sobre a matéria, publicado na Revista dos Tribunais, volume 595, página 38, Arnoldo Wald, com habitual competência doutrinária, salienta dentre vários argumentos importantes: “37. Embora a posição tradicional do nosso Direito fundamentasse a responsabilidade na culpa, a atual jurisprudência, inclusive do STF, reconhece que o banqueiro deve responder pelos danos que causa, no Acórdão do RE 3.876-SP, de 3/12/42 que deu ensejo à Súmula 28. Entendeu a nossa mais alta Corte, nos termos do voto do Min. Aníbal Freire que foi acompanhado pelos Mins. Philadelfo Azevedo e Castro Nunes, que os estabelecimentos bancários devem suportar os riscos profissionais atinentes à sua atividade.”

“38. Essa jurisprudência que surgiu no tocante ao pagamento, pelos bancos, de cheques falsos, firmou um princípio geral, de acordo com o qual respondem pelo risco profissional assumido, elidindo tal responsabilidade, a prova, pela instituição financeira, de culpa grave do cliente ou de caso fortuito ou força maior.”

No mesmo Parecer (fls. 39), citando Nassaralla Schain Filho, em estudo publicado na Revista de Direito Mercantil, o grande Mestre registra: “Carreia-se ao sacado o prejuízo também pela invocação do risco profissional. O banco sacado, na qualidade de comerciante, assume o risco do seu comércio. Há nesse princípio do nosso Direito Comercial a aplicação subsidiária do aforismo jurídico ub commoda, ibi sunt incommoda. Porque, recolhendo o comerciante as vantagens e lucros do seu comércio deve sofrer também suas desvantagens, que é o risco inerente ao seu comércio… Por fim, na expectativa de não se descobrir culpa ou dolo de nenhum dos interessados, resolve-se a imputação pelo risco profissional do comércio”(16).

“Daí a cristalização do entendimento jurisprudencial brasileiro, na Súmula STF.28.

E finaliza (40): “O direito estrangeiro, quando não reconhece a culpabilidade do banqueiro pelo risco profissional, como fez a jurisprudência brasileira, o responsabiliza por todos os atos dolosos e culposos, inclusive nos casos de culpa leve, que poder ser caracterizada por qualquer falta de diligência, mesmo quando comum e habitual, de acordo com os usos bancários.”

Considerações Finais:

1.ª – O banco na sua qualidade de prestador de serviços é considerado pelo CDC (Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990), como fornecedor, segundo o Art. 3.º do referido Código:

2.ª – Ainda de conformidade com o indigitado Código, são direitos dos consumidores, dentre outros, a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos (Art. 6.º), norma que apenas repete, com pequena diferença de redação, os incisos V e X, do artigo 5º da vigente Carta Magna;

3.ª – No vigente Código Civil Brasileiro, também localizamos norma semelhante, quando conjugamos, entre si, seus artigos 186 e 927;

4.ª – Na sua missão importante de prestação de serviços aos consumidores e terceiros prejudicados por ação ou omissão do banco, deverá este zelar para que ninguém que deposite sua integral confiança na imagem do estabelecimento e nos seus serviços, possa sofrer qualquer dano ou prejuízo, os quais deverão ser ressarcidos integralmente pelo causador;

5.ª – Sua responsabilidade civil se enquadra como extracontratual ou objetiva, alicerçada no risco profissional do comércio exercido, salvo provada culpa exclusiva do prejudicado, ou culpa concorrente, caso em que os prejuizos deverão ser repartidos;

6.ª – O nexo causal, ou nexo de causalidade, está no fato de que quem aceita cheques especiais o faz com base na boa imagem do sacado e de que tal cheque, é ou deveria ser realmente especial, como especial deveria ser o correntista que mereceu tal honraria;

7.ª – Sente-se que a teoria de Von Ihering, segundo a qual não pode haver responsabilidade sem culpa, “já está mofada, bolorenta, mesmo” e que os casos que forem levados ao Poder Judiciário, serão analisados pela teoria do risco profissional em conjunto com o liame de causalidade, pois não importa que tal responsabilidade nasça do comportamento direto ou indireto do autor da lesão, salvo, é óbvio, se ela não puder lhe ser imputada em razão de caso fortuito, imprevisível, ou quando resultar demonstrada a culpa exclusiva da vítima, ou seja, quando ficar patente que o evento se deu em conseqüência da culpa autônoma e evidente da pessoa que se queixa da lesão.

8.ª – Deverão ser condenadas ao reembolso dos danos e prejuízos materiais e morais, as instituições financeiras que concedem cheques especiais a pessoas físicas ou jurídicas que não possuam idoneidade moral ou comercial satisfatórias e patrimônio condizente ao crédito concedido;

9.ª – Ressarcindo-os não sofrerão qualquer prejuízo, porque têm contra o seu cliente, a quem concederam regalia indevida, ação regressiva fundamentada no Art. 985, inciso III, do Código Civil Brasileiro;

10.ª – A prova concreta, documental, dos prejuízos sofridos, está no valor das cártulas representativas do cheque especial concedido, devolvidas por falta de lastro;

11.ª – Tratando-se de pessoas físicas e de micro-empresas as ações de cobrança ou de danos materiais e/ou morais, amparadas sempre no cheque ou cheques devolvidos, poderão ser acionadas perante o Juizado Especial Cível na praça de pagamento, ou seja, na sede da filial bancária, até o valor de quarenta (40) salários mínimos, atualmente R$10.400,00 (dez mil e quatrocentos reais);

Podem, ainda, tais ações ser propostas na cidade onde reside o prejudicado, pois, se não alegada a incompetência do juízo, este se torna prevento de acordo com a lei processual;

12.ª – Como verdadeiros cultores do Direito, não devem os senhores magistrados, de forma parcial e precipitada, sem dar condições ao autor de provar suas alegações, indeferir liminarmente tais ações, sob pressuposto injusto e protecionista de que tais estabelecimentos são partes ilegítimas para figurarem no pólo passivo da demanda.

É o nosso pensamento, com humildade e respeito às opiniões divergentes.

Notas:

(1) José Naufel, Novo Dicionário Jurídico Brasileiro, Editora Beta Ltda., 6.ª edição, volume, página 126.

(2) Egberto Lacerda Teixeira, A nova lei brasileira do cheque, Saraiva, 1985, página 17.

(3) Citado por J.ª Martins Silva, O cheque – seu conceito jurídico cambiário e abusos, Alba, 1961.

(4) Lourenço Mário Prunes, Cheque falso e cheque sem fundos, Max Limonad, 1977, página 9.

(5) Lauro Muniz Barreto, O novo direito do cheque, Leud, 2.º volume, 1975, página 409.

(6) Tratado de Direito Comercial Brasileiro, Freitas Bastos, volume V, Livro III, 1963, página 454, n.º 967.

(7) Paulo Maria de Lacerda, Do cheque no direito brasileiro, Editora Jacinto Ribeiro dos Santos, 1923, página 19.

(8) J. M. Othon Sidou, do Cheque, Forense, 3ª edição, 1986, página 28.

(9) 1.º TAC/SP, 7.ª Câmara, Apel. N.º 412.413-6 SP, relator Juiz Renato Takiguti, j. em 17/10/88, v.u.

(10) J.B. Torres de Albuquerque, Abusos dos estabelecimentos bancários, 2.ª edição, Serrano, volume I, página 187

(11) Marcos Geraldo Porto de Oliveira, LED, 2.ª edição, 2001, página 47.

(12) Silvio Rodrigues, citado por J.B. Torres de Albuquerque, Abusos dos estabelecimentos bancários, 2.ª edição, Serrano, volume I, página 209.

(13) Ulderico Pires dos Santos, A responsabilidade civil na doutrina e na jurisprudência, Forense, 1984, página 176.

(14) Ressarcimento de danos pessoais e materiais, Lúmen Júris, 7.ª edição, 2001, página 35, item 19.

(15) Responsabilidade civil à luz da jurisprudência, Leud, 1986, página 165, ementa n.º 67.

(16) Revista dos Tribunais, 117/632 e RT 77/431.

Elyseu Zavataro

é advogado em Jacarezinho/PR.

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