O CAHS, Munir Karam, Vieira Netto, Araújo Lima e o julgamento de Otelo

Edésio Passos

1. Munir Karam

Munir Karam, hoje desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná, foi presidente do Centro Acadêmico ?Hugo Simas?, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, no excepcional período 1960/61. Naquele memorável pleito dos idos de 60, em que nos defrontamos, tive a honra de perder a eleição para a presidência do CAHS para Munir, por apenas três votos, assim decididos na última urna aberta depois de empates sucessivos. As eleições para o CAHS assim como hoje eram extremamente renhidas, com ampla participação de todos os estudantes e até mesmo de ex-estudantes, ainda ligados por laços fraternos aos bancos escolares. E assim foi naquele ano, também agitado pelas eleições presidenciais que deram a vitória a Jânio Quadros, e as estaduais que levaram Ney Braga ao governo do Paraná, Brizola no Rio Grande do Sul, Arraes em Pernambuco.

2. Otelo

Munir Karam me brindou com a obra por ele coordenada ?O Julgamento de Otelo? (segunda edição da Juruá, 2004, gestão de Vitor Puppi) na qual reproduz ricamente o que o próprio Munir considera ?o ponto mais destacado e sempre lembrado da minha gestão como presidente do CAHS, no ano do jubileu de pérola?. O evento, de magistral oportunidade e beleza, propunha julgar um personagem célebre da literatura mundial. A escolha de Otelo, o Mouro de Veneza, da obra de Willian Shakespeare (editora Nova Aguilar,1995), ainda no ver de Munir, foi motivada ?porque Otelo lembra vicissitudes sociais contemporâneas, que dominam o drama por inteiro, desde as cenas mais comuns às paixões mais excitantes?.

3. Vieira Netto & Araújo Lima

Munir relata na nota à segunda edição, que buscou dois grandes criminalistas para atuarem como acusador e defensor de Otelo e que também ?tivessem verve literária?. De imediato escolheu o professor José Rodrigues Vieira Netto, nosso inesquecível professor de direito civil, advogado de grandes causas, ?intelectual renomado, gostava de prestigiar iniciativas artísticas e culturais?. A defesa coube ao não menos renomado jurista Carlos de Araújo Lima, do Rio de Janeiro. O resultado do embate foi que ?Vieira Netto, não se afastando de sua cátedra, deu uma lição de cultura jurídica e literária. Araújo Lima, advogado no júri, afastou teorias e divagações, apresentando a realidade palpitante dos fatos e suas circunstâncias?.

4. Paulo Autran, o réu

Diz Munir: ?Restava agora acertar com o réu. Paulo Autran foi muito receptivo e concordou em participar do espetáculo, nos trajes típicos de Otelo, não para representá-lo, mas para ser julgado. Durante o julgamento, Paulo Autran recitou vários monólogos, à guisa de confissão, sendo o derradeiro deles, após proclamado o resultado, verdadeiramente arrebatador, como se Shakespeare o houvesse escrito para aquela oportunidade?.

5. E ainda…

Para apresentar o espetáculo, foi indicado o hoje jurista e professor René Dotti, ?recém-formado, mas já surgindo como grande talento na área criminal, além de refinado gosto literário?, juntamente com o crítico literário Wilson Martins. O presidente do júri foi o desembargador Ernani Guarita Cartaxo, diretor da Faculdade de Direito, e dentre os doze jurados um deles era o então acadêmico Negi Calixto, depois desembargador, e o calouro Oto Luiz Sponholz, ex-presidente de nosso TJ. Pela primeira vez ocorreu televisionamento externo do júri realizado no Teatro Guaíra, ?obra ainda inacabada, com tijolos à vista, tarugamentos, meia-luz, ambiente quase surrealista?, como lembra Oto. O porteiro do auditório, para os pregões de momento, foi nosso colega de turma Rubem Valduga, primoroso na arte dramática, mais tarde eleito deputado estadual.

6. O libelo

O libelo foi formulado sinteticamente: ?Por libelo crime acusatório diz a Justiça Pública contra o Réu Otelo, também conhecido como o Mouro de Veneza, e nos melhores termos de direito. S.N. Provará, 1.º – Que, nasceu no ano de 1570, em dia e hora que não se acham devidamente apurados, o Réu Otelo em conluio com outro, determinou a execução de atos materiais para tirar a vida de Cássio. 2.º – Que, em virtude dessa determinação, Cássio foi ferido por terceiros. 3.º – Que, em conseqüência desses ferimentos, resultou em Cássio deformidade permanente. 4.º – Que, na mesma noite Otelo, usando sua espada, tentou matar Iago, produzindo-lhe ferimento. 5.º – Que esse ferimento foi de natureza leve. 6.º – Que, finalmente, Otelo sufocou Desdêmona com as próprias mãos. 7.º – Que, esse ato foi causa eficiente da morte de Desdêmona?.

7. A acusação

De Vieira Netto, no final da acusação, ao júri: ?Não vos peço que à morte o condeneis, primeiro porque não creio na pena de morte, segundo porque, segundo ouvi dizer, ele se anteciparia à sentença que dareis. Não podeis prender Otelo. Peço-vos que o condeneis a repetir eternamente o seu drama e o seu feito. Que Otelo, pela vida afora, enquanto exista o mundo, sofra de novo os tormentos que criou, o punhal do arrependimento e a dor do próprio crime, – numa lição profunda e sempre repetida de como o amor não deve ser. Agora Juízes o veredito é vosso, e vossa será a Justiça que fazeis. Que na consciência de Otelo a Justiça já está feita ?porque tu Otelo, tu mataste a mulher mais pura entre as que possam andar na terra, de cabeça erguida?.

8. A defesa

De Araújo Lima, o apelo para a absolvição: ?Pode haver responsabilidade criminal sem vontade e sem consciência, por parte do agente? A vontade de Otelo era livre, jurados? Tudo, tudo lhe foi sugerido, lhe foi imposto, até a minúcia da execução do crime… Quando até o detalhe do estrangulamento como forma de praticar o crime lhe foi imposto imperativamente, despoticamente pelo verdadeiro criminoso afortunado que não teve a justiça de uma acusação implacável como seria a de um Vieira Netto! Não estava Otelo acobertado pela eximente da coação moral irresistível??

9. O resultado

É Oto também que relembra na nota que escreveu para a publicação: ?Do memorável jogo dialético entre acusação e defesa, representado por dois magos da palavra, Vieira Netto e Araújo Lima, resultou surpreendente empate. E, com ele, a absolvição do mouro de Veneza: in dubio pro reo. Mas quando todos esperavam o epílogo do espetáculo, eis que Paulo Autran, protagonizando o acusado em suas vestes típicas, levantou-se de súbito e declamando monólogo da peça, como se Shakespeare o houvesse escrito para aquele momento, puxa de sua adaga e se apunhala em auto-sacrifício. A platéia, já de pé, assistiu incrédula àquele espetáculo. São imagens gravadas em nossa retina, que o tempo não apagou e que agora, na releitura do texto, ainda nos provocam forte emoção?.

10. O desfecho inesperado

Paulo Autran é Otelo, Otelo é Paulo Autran, no desfecho final: ?Um momento! Antes de irdes, escutai-me uma ou duas palavras. Bons serviços prestei eu a Veneza, e isto é sabido. Quanto a esta parte, é só. Mas quando relatardes estes funestos acontecimentos, descrevei-me qual sou, sem nada atenuar, nem tampouco agravar, com maligno intuito. Assim fazendo, falareis de um homem que, sem saber amar, amou profundamente e que, apesar de infenso aos zelos amorosos, nas garras do ciúme enlouqueceu. De um homem cuja mão, como a do índio pobre, sem lhe saber o preço, atirou fora a mais preciosa pérola da tribo. De alguém que, de olhos baixos, nada afeito sequer à comoção, lágrimas verte prodigamente, como as árvores da Arábia vertem sua resina perfumosa… Escrevei isso. E acrescentai ainda que, uma vez, em Alepo como um turco, entre insolências a um veneziano ousasse dirigir ultrajes a Veneza, pela goela agarrei o cão circuncidado e o castiguei assim! (apunhala-se)?.

11. Lutas e sonhos

O começo dos anos sessenta anunciava lutas e sonhos.

Em 61 Jânio renunciou à presidência, os militares tentaram o golpe, Brizola junto com milhões de brasileiros liderou a resistência democrática, o parlamentarismo com Jango foi por pouco tempo até o presidencialismo retornar, os operários-camponeses – estudantes formaram seus pactos em defesa das reformas nacionalistas de base.

Lutas que os estudantes de Direito desenvolviam em favor da liberdade, da justiça, da paz, dos bancos escolares às ruas, das lições dos mestres aos debates radicalizados. Jovens que acalentavam sonhos de uma vida digna e solidária, para cada um, para os seus, para o povo.

A tragédia de Shakespeare prenunciava as nuvens carregadas da tempestade que viria, os difíceis tempos da ditadura militar que conduziriam a Nação a provações não esperadas.

Mas, por certo, a cada um de nós que viveu, sentiu e se comoveu com o drama de Otelo, estava também reservado um papel na história dos tempos de amor e de ódio, de lágrimas e alegrias. Que pressentíamos no ar abafado daquele teatro inacabado.

E.mail: edesiopassos@terra.com.br

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