O Brasil vive a “síndrome de Eloá”

Não bastasse o rigorismo extremado da “Lei Maria da Penha”, o Brasil vive a “síndrome de Eloá”. Qualquer conversa mais ríspida entre casais, ainda que para discutir uma relação, pode gerar pelos vizinhos ou familiares a mobilização da força pública para imediata intervenção.

Em Curitiba, um recente caso tomou proporções gigantescas pelo fato de ser, prematuramente, imaginada incursão do agente no delito de “rapto” com “seqüestro” e “cárcere privado”.

Incontáveis viaturas da Polícia Militar ficaram das sete às onze horas, até que reencontraram a vítima em um ponto de ônibus (segundo eles uma “quase Eloá”) e prosseguiram até as dezoito horas para promover prisão do suposto autor.

No Oitavo DP de Curitiba, com a oitiva de pessoas (autor, pretensa vítima, amigos e os condutores) por ocasião da lavratura do auto, ficou evidenciado, para a defesa, que nenhum crime de maior potencial ofensivo se consumara, salvo o delito de contrangimento ilegal em tese, e, mesmo assim o delegado acenou com incursão no artigo 148 do CP (“seqüestro e cárcere privado”) e assim mencionou a “nota de culpa” além da agravante pelo fato da vítima contar com 17 anos de idade.

O fato assim pode ser sintetizado de acordo com comentários do advogado Flávio Warumbi Lins: A) – um rapaz, com 21 anos de idade, servente de pedreiro, desarmado mas com uma mochila nas costas, se aproxima (a pé) da sua ex-convivente (17) com a qual tem um filho de tenra idade, quando esta ia para a escola, por volta das 7h, e a “intimida” para que o acompanhe em uma caminhada. Assim, discutiriam a relação e problemas ligados à visita do filho de ambos que estaria em poder dela; B) – ela o segue, contra a sua vontade, e passam a andar pelas ruas da cidade e, em alguns trajetos, de ônibus; C) – por volta das 11h, o rapaz a deixa seguir e esta toma um ônibus para casa.

Pessoas que presenciaram alguns dos lances iniciais e intermediários dessa “caminhada” interpretaram-na, apressadamente, como se estivesse para acontecer outro “caso Eloá” e, já de início, acionam a polícia.

O curioso é que se fosse realmente seqüestro, estaria em xeque a eficiência de nosso sistema de segurança pública, onde alguém se aproxima de outrem as 7h, caminhando e utilizando transporte coletivo, e a polícia que foi mobilizada por volta das 8h, somente chega ao autor por volta das 18h. Imagine-se se estivesse ele usando uma bicicleta!

Entendemos que quando muito, poder-se-ia configurar “constrangimento ilegal” (artigo 146 do CP, com pena de 3 meses a 1 ano), de pequeno potencial ofensivo, da competência do Juizado Especial Criminal.

Outro não é o entendimento jurisprudencial: “impelido o autor por intento outro que não o de seqüestrar a vítima, não se configura o crime contra a liberdade pessoal previsto no artigo 148 do CP.

É que o elemento subjetivo deste delito é a vontade livre e consciente dirigida a ilegítima provação ou restrição da liberdade alheia. Na sua ausência, caracteriza-se o constrangimento ilegal do art. 146 do CP”. (TJSP RT 651/267). Ainda, por estar em lugar público, com seu ex-companheiro com o qual tem um filho pequeno, de intenso movimento de pedestres como terminais de embarque de ônibus urbano, a pé (sem estar nele algemada ou amarrada) aplica-se o entendimento seguinte: “não há falar em seqüestro se a ofendida teve várias oportunidades de se livrar do “seqüestrador” e não o fez…” (TJSP RT: 526/360).

Os jornais estamparam em manchete: “coisa de criança – dezenas de policiais são mobilizados enquanto casal passeia de ônibus”, “maluquice por amor”, “rapaz leva ex-mulher a força e é preso pela PM”.

Ao agradecer o colega Flávio, observo que este caso é daqueles que pode ser aproveitado para um aspecto de finalidade pedagógica, ou seja, ainda que estivesse ele inicialmente mal intencionado, teria praticado o que o artigo 15 do CP denomina: “desistência voluntária”?

Em caso afirmativo, é um momento judiciário apropriadíssimo para ser prontamente liberado o acusado. Isto passará para a sociedade brasileira que aqueles que desistem de empreitadas ilícitas, sem maiores conseqüências para vítimas, obtém um reconhecimento judicial e uma nova chance com a devolução de sua liberdade.

Tivessem os negociadores da polícia paulista um caso (precedente judicial) concreto para mostrar ao seqüestrador de Eloá, onde alguém, em condições parecidas desistiu sem maiores conseqüências para as vítimas e obteve esse reconhecimento judicial, talvez o epílogo pudesse ter sido outro…

Elias Mattar Assad é presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas.
eliasmattarassad@abrac.adv.br