Nova legislatura, velha distorção

Dentre todas as reformas insistentemente reclamadas pelos brasileiros, a política é uma das mais necessárias e urgentes, de forma a se corrigirem determinadas distorções, incompatíveis com o avanço da democracia no País. A proximidade do início de uma nova legislatura no Congresso Nacional evidencia uma das mais graves distorções políticas nacionais: a proporcionalidade inadequada das bancadas na Câmara dos Deputados em relação à população de cada Estado. Este problema impede que o Parlamento represente a sociedade de forma efetiva, equilibrada e em sintonia mais fina com seus anseios e necessidades.

Há grave distorção da democracia quando a própria etimologia da palavra (do grego demos, “povo”, e kratus, “autoridade”) é subvertida em termos práticos, conferindo-se pesos diferentes ao voto de cidadãos residentes em Estados distintos. Isto significa estabelecer compulsoriamente a figura do eleitor de segunda classe. Ou seja, é a institucionalização de um procedimento tão politicamente incorreto quanto quaisquer atos de discriminação de pessoas, religiões, sexo e ideologia.

Nas eleições de 2002, foi fácil perceber essa questão. Na votação para os cargos majoritários (presidente da República, governadores e senadores), o voto de cada brasileiro teve exatamente o mesmo peso e poder de decisão. O mesmo, contudo, não ocorreu na votação proporcional para deputados federais. Nesta, o voto do eleitor do Estado de São Paulo, por exemplo, valeu muito menos do que o do Amapá ou do Acre.

A matemática confere inquestionável e claríssima evidência a essa afirmação: São Paulo tem 24.263.612 eleitores e bancada de 70 deputados federais, ou seja, um parlamentar para cada 346.623 eleitores. O Amapá tem 250.077 eleitores e oito deputados federais, ou seja, relação de um para 31.259. No Acre, esta relação é de 41.597, considerando-se a existência de 332.781 eleitores, para uma bancada de oito deputados.

Ou seja, nas importantes deliberações da Câmara dos Deputados, muitas delas decisivas para a vida e o destino da Nação, o voto do eleitor paulista vale 11 vezes menos do que o do Amapá e oito vezes menos do que o do Acre. Nada contra estes dois Estados amazônicos ou a favor de São Paulo. Estes são apenas exemplos reais de um problema que prejudica boa parte das unidades da Federação, ferindo o conceito da representatividade política, um dos pilares conceituais da democracia.

Para evitar interpretações equivocadas, é importante deixar claro que o número de três senadores por unidade da Federação não entra nesta conta, pois o Senado é representação política dos Estados, ao contrário da Câmara Federal, que atua em nome da população. O número fixo de senadores já garante a eqüidade de direito entre os Estados, enquanto organismos jurídicos e unidades federativas.

No Título IV da Constituição (“Da Organização dos Poderes”), está muito clara a distinção entre as duas casas do Congresso. O artigo 45 diz: “A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal”. O artigo 46 estabelece: “O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário”.

Assim, há atribuições e prerrogativas de todo o Congresso, há aquelas privativas da Câmara e existem as da alçada exclusiva do Senado. Neste aspecto, seria interessante rever algumas dessas atribuições, para que o Senado tivesse competências exclusivas sobre questões pertinentes ao relacionamento jurídico e institucional entre Estados e União e a Câmara, sobre temas ligados aos interesses diretos da sociedade. Esta é matéria jurídico-legislativa complexa, mas que terá de ser analisada em profundidade, para que o Parlamento possa estar estruturado e atuar próximo de um regime ideal.

Prioritário, contudo, é estabelecer a justiça na proporcionalidade da representação das unidades federativas na Câmara dos Deputados, um sensível aperfeiçoamento da democracia brasileira, possibilitando que todo o povo exercite de forma equânime a sua legítima autoridade. Esta situação é análoga à verificada em clubes e instituições da sociedade civil, nos quais também não se observava a justiça na estrutura da representatividade. Eleições recentes em clubes, mesmo naqueles com milhares de associados, têm demonstrado o quanto nociva é a ausência de proporcionalidade na representação política. Há agremiações nas quais tem prevalecido um sistema de quase ditadura de grupos.

Felizmente, o novo Código Civil corrigiu essa distorção nos clubes e entidades do gênero, estabelecendo eleições diretas, com o voto de todos os associados. Quem sabe este avanço no âmbito da sociedade civil sensibilize os parlamentares e o governo. É insensato (sem falar de Justiça e Ética…) impor à maioria os interesses ou o que é melhor para a minoria. Situações como estas somente são possíveis quando há desproporcionalidade na representação dos votos.

A democracia afasta-se de sua essência à medida que o poder de legislar vai-se tornando mais concentrado. Neste momento em que o Brasil deve avançar, solucionar seus problemas e participar de forma soberana da nova ordem econômica mundial, é preciso extirpar velhos equívocos políticos. E isto significa estabelecer com clareza e valorizar a autoridade dos cidadãos, em cujo exercício não pode haver quaisquer privilégios.

Ruy Martins Altenfelder Silva, advogado, é presidente do Instituto Roberto Simonsen.

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