Normas e Borbotões

“vê que inda, negro, da ferida / Aos borbotões o sangue cai…”(Olavo Bilac)

A edição de normas aos borbotões (verborréia legislativa a que se referia Carrara), se para alguns não leva, deveria levar ao questionamento de suas justificativas, de seus reais fins, do porquê de sua edição, quando não da possibilidade de suas aplicações de forma isonômica, até por atenção a preceitos constitucionais. Está-se diante de um problema, no sentido de imprimir honestidade acadêmica ao fenômeno legislativo. Isto como forma de combater o que Jaques Lenain chama de mensonge politique e que Hobbes justificava como útil, por ser melhor do que a guerra.

Para Bobbio, trata-se de encontrar uma justificativa retórica que convença o maior número de pessoas possíveis sobre a necessidade da aplicação do direito que está sendo positivado. Este convencimento necessário indica, desde logo, razão a Agostinho Ramalho quando sustenta que o direito é o resultado de uma construção social, realizada dialeticamente, limitada pelas possibilidades histórico-culturais e sociais de um povo (em constante evolução).

Esta assertiva se vê reforçada, ao se admitir/ (re)conhecer, como fez Agostinho, que o conhecimento é retificável, e sua evolução, uma possibilidade viável e necessária.

Luiz Fernando Coelho, no mesmo sentido, afirma que é da incoerência interna do sistema que nasce o novo instituinte. Novo que, uma vez instituído, dará azo a novas contradições, que permitirão sua retificação, o que seja, o surgimento de outro novo instituinte, e assim sucessivamente. Isto não garante, no entanto, que o novo que se institui esteja livre de retrocessos , vez que se o mede em função do que foi retificado.

Para Humberto Maturana, esta seqüência de retificações se origina da busca de sobrevivência do sistema que, em mutação permanente, se vale das incoerências internas, de seu próprio desequilíbrio, para seguir em frente. Assim, o equilíbrio seria fatal. Indicativo de estagnação. Pode haver então sabedoria no caos.

O essencial é que se atente para a liberdade de forma inegociável. Liberdade que tem de ser entendida em pelo menos dois de seus aspectos. O primeiro, aceitando e respeitando a alteridade, até por respeito a noções sistêmicas, que indicam que o que aos outros fazemos, estaremos fazendo a nós mesmos. (Aristóteles, Boetie, Prigogine, Capra….). O segundo, em relação a nós mesmos (sujeito cognoscente). Como diz Baudrillard, a verdadeira liberdade reside em tratarmos nossas idéias como se fossem idéias de outros. Nos permitindo criticá-las, melhorá-las, retificá-las, pois se não formos livres para revermos o que produzimos, ficaremos escravos de nossas próprias convicções (equilíbrio fatal). Estaremos então soltos, como diz Baudrillard, mas jamais livres.

Esta liberdade permite mais possibilidades de diferenciarmos direito positivado de positivismo. Aquele legítimo porque construído pela sociedade que o enforça, desde que conforme a Constituição da República (materialização do nascente instituinte). Norma esta que, em países como o nosso (que conhece tardiamente a modernidade, como assevera Lenio Streck) tem de ser dirigente (Canotilho). Já o positivismo, como diz Warat acaba sendo “determinação do ser por verdades absolutas, que provoca um estado de infantilismo, um total despojo do ser, uma vez que permite que um ponto de vista atemporal predomine como guardião autônomo da história”.

Sem atentar para a liberdade (pelo menos no duplipensar acima exposto), estaremos vendo o novo com os olhos do velho, como diz Jacinto Coutinho. Faremos com que o nascente instituinte não passe de uma utopia natimorta. Utopia, pois que algo que não é mas pode vir a ser (Ludwig) e natimorta, pois que nunca será em sua plenitude, por conta de um dogmatismo de homens “negados como produto lingüístico…negando a existência como transferência discursiva” (Warat).

Há porém, que se atentar para a necessidade de seguir o rito próprio para que se positive o direito. Liberdade para reconstituir as próprias idéias não quer significar acefalia justificada (até porque ontologicamente impossível). O novo instituinte enquanto possibilidade viável não pode jamais autorizar irresponsabilidade. Trata-se como diz Jacinto Coutinho, de se estabelecer regras válidas para todos, até que sejam alteradas (para todos), atendendo um procedimento dialético honesto e legalmente instituído, pela Constituição Dirigente que não morreu (pelo menos ainda hoje em nossa realidade). Não é razoável valer-se de significantes como razoabilidade, por exemplo, para retoricamente tentar sustentar não razoabilidades. Parafraseando Baudrillard, trata-se de uma troca impossível.

Atendendo aos limites deste breve comentário, antes de vislumbrar apresentar uma solução pronta e acabada (na qual não cremos, pois não seria retificável), por hora nos contentamos em questionar que direito é este que estamos construindo, com que graus de liberdade e de responsabilidade está isto sendo feito. Ou, como disse Warat, “perguntar, para armar uma perspectiva que permita buscar os sinais do futuro”.

Luís Fernando Artigas Jr.

é delegado de Polícia titular da Subdivisão Policial de Paranavaí.

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