No despertar do ano que cochila

Contam-se os dias, limpam-se os espaços, exorcizam-se os maus fluidos, institui-se o branco como desejo de recomeço e de purificação do passado. Trocam-se agendas velhas por esperanças novas, embora ambas limitadas por datas e números. Abraçam-se os que estão próximos enquanto mensagens de abraços remotos circulam no espaço. As palavras rolam e despenham-se, enfáticas e repetidas: feliz, feliz, feliz, ano, ano, novo, 2005.

Há no vento e na luz o desejo expresso de recomeço, de prós um após o outro projetos, propósitos, propostas, promessas. Os diários ganham páginas novas, as agendas abrem-se em folhas virgens, os calendários enfileiram 365 números sem rasuras. Estamos devidamente equipados para receber o ano-criança, anunciado em cores e grandezas.

No ritual de recebimento dos dias que virão, cabe ouvir a voz do poeta Carlos Drummond de Andrade, ele, também, integrado nas luzes e na cegueira das comemorações cíclicas.

(…) você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, não precisa expedir nem receber mensagens. Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. Não precisa chorar de arrependido pelas besteiras consumadas, nem parvamente acreditar que, por decreto de esperança, a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.

Os finais de ano reservam, a nós, professores, uma sobrecarga de tarefas e de momentos de avaliação de nosso desempenho. Nossa profissão tem similaridade com a espera de um novo ano. Um mês depois dos fogos de artifício, dos banhos de cheiro, das superstições do minuto de passagem, das roupas brancas e dos sorrisos fartos, estamos nós a postos para receber turmas novas com faces e comportamentos próprios (mas, na realidade, sempre muito parecidos). O desejo de um trabalho pedagógico mais eficaz do que o do ano terminado, o planejamento devidamente renovado, o propósito firme e forte de uma atuação docente entusiasmada, as promessas de governantes e dirigentes de que "nada será como antes" abastecem nosso brio profissional. Mais uma vez, iniciamos um longo período de crenças e de esperanças, que terá sua avaliação num outro mês de dezembro.

Enquanto reabasteço o estoque de bons propósitos, leio a notícia de que o governo federal promete verbas maiores para a educação em 2005. Leio que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ao aplicar o Exame da Ordem aos recém graduados, aprovou 30% dos candidatos na média. O resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) comprovou, mais uma vez, que os egressos alcançaram a estupenda marca de 4,5 pontos num total de dez! Para garantir que os abaixo da média possam continuar seus estudos, as cotas são criadas e defendidas pelas Universidades e pelo Ministério da Educação (MEC).

Educação é uma questão de cidadania. A democratização do ensino é um fato afirmado em todas as pesquisas dos últimos anos. Nunca o Brasil teve um índice tão elevado de estudantes em sala de aula. São conclusões de relatórios e mais relatórios que circulam nos meios oficiais e nos acadêmicos. Ponto positivo para os brasileiros.

No entanto, o critério de qualidade e credibilidade desse ensino não aponta para a euforia tão anunciada. Pergunte-se a um experiente professor se ele pode atestar que a educação formal tem melhorado, em proporção semelhante ao número de alunos. Pergunte-se se as condições de trabalho não apenas as materiais têm acompanhado a evolução quantitativa do alunado. Pergunte-se ao professor que explicações ele pode dar ao fato de que existe um déficit extraordinário de docentes na Educação Básica.

Para além do branco total, do show de pirotecnia da passagem do ano, das baboseiras televisivas que saúdam o pretenso iniciar de uma nova página do calendário, convém pensar lembrar outro poeta, José Paulo Paes, que no poema Brinde ironiza:

Ano novo:

vida nova

dívidas novas

dúvidas novas

salve(se) o ano novo!

Apesar dos resultados contraditórios no palco da educação brasileira, apesar da pálida imagem projetada pelas avaliações do ensino, desejo a você, irmão professor, irmã professora, que possamos despertar o ano novo que cochila, salvá-lo de um acordar desesperançado, ampará-lo na medida de nossas forças para que seu retrato, no próximo dezembro, reproduza uma criança mais saudável, com as cores da vida que nosso cuidado e amparo conseguiram desenhar em sua face.

Que tenhamos todos um 2005 que fizermos por merecer.

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