Negociação coletiva sem sindicato

(o problema da recepção do § 1.º do art. 617 da CLT)

1. Introdução

Um dos problemas mais difíceis que se põe para o operador jurídico é o fenômeno da recepção pela Carta Magna de 1988 dos dispositivos da CLT, especialmente aqueles voltados à órbita sindical.

É que o modelo implantado pela nova Constituição, de liberdade sindical (ainda que com as amarras da unicidade e da contribuição obrigatória), difere em muito do sistema fechado, corporativo, vigente até 4 de outubro de 1988.

Ainda não se fez, de forma científica, ou formal, uma varredura geral na CLT para saber quais os dispositivos que seriam inaplicáveis a partir do novo texto constitucional.

Em face disso, busca-se examinar se o § 1.º do art. 617 da CLT foi ou não recepcionado pela CF/88.

2. Os textos constitucional e celetário

Dispõe o inciso VI, do art. 8.º, da CF/88, ser obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho.

Por seu turno, o caput do art. 617 da CLT possibilita que os empregados, pretendendo celebrar Acordo Coletivo com a empresa, cientifiquem o sindicato de sua categoria, que teria o prazo de oito dias para assumir “a direção dos entendimentos entre os interessados”. Escoado esse prazo sem manifestação do sindicato, os interessados podem dar conhecimento do fato à federação, e, em falta desse, à confederação correspondente, para que, nesse mesmo prazo, possa responsabilizar-se pelos entendimentos.

A parte final do § 1.º do art. 617 dispõe que “esgotado esse prazo, poderão os interessados prosseguir diretamente na negociação coletiva, até final”.

3. Corrente positiva – a norma foi recepcionada

O E. TRT da 9.ª Região, em acórdão de relatoria da Exma. Juíza Wanda Santi Cardoso da Silva, decidiu que “havendo prova nos autos de que as entidades sindicais de 1.º e 2.º grau negaram-se à participar de negociação coletiva (…), resulta eficaz o pactuado diretamente entre as empresas e seus empregados. Aplicação da parte final do § 1.º, do art. 617, da CLT” (AD 02/02. AC. 12.167/02. DJPR 31.5.02).

Concluir-se-ia, então, por não haver incompatibilidade entre o artigo 617 da CLT e o artigo 8.º, inciso VI, da Constituição Federal.

Em comentário ao art. 617, caput, e parágrafos 1.º e 2.º, da CLT, Sergio Pinto Martins assinala: “Apesar de a participação do sindicato dos empregados ser obrigatória nas negociações coletivas de trabalho (art. 8.º, VI, da CF), entendo que os dispositivos anteriormente elencados não foram revogados pela Constituição, pois se o sindicato não tem interesse na negociação, os interessados não poderão ficar esperando indefinidamente, daí porque podem promover diretamente as negociações” (Comentários à CLT. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 631).

4. Corrente negativa – a norma não foi recepcionada

Existem, contudo, autores que entendem de forma diversa.

João de Lima Teixeira Filho assim se posiciona: “Precisamente porque a negociação coletiva é monopólio sindical, entendemos que a Carta de 88 não recepcionou a previsão de empregados interessados entabularem negociação direta com o empregador ou sindicato patronal caso as entidades que os representem, nos diversos graus da estrutura, refuguem no cumprimento de sua missão precípua (parte final do art. 617, § 1.º, da CLT)”. (Instituições de direito do trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 1999. p. 1191).

Maurício Godinho Delgado explicita, com ênfase, não ser eficaz “o critério previsto no art. 617, § 1.º, da CLT, por não recebido pelo Texto Magno” (Direito Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001. p. 120).

Há, também, decisão de Tribunal do Trabalho respaldando esse entendimento, assim: “O art. 617, § 1.º, da CLT, que admite negociação direta entre empregados e empregadores, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. É que, sem exceção, a participação dos sindicatos é obrigatória nas negociações coletivas (art. 8.º, VI, da Constituição Federal). Não pode, assim, pretender o empregador fazer substituir a entidade sindical por um dócil grupo de empregados “interessados” na alteração in pejus das condições contratuais; especialmente, no que toca à cláusula mais importante do contrato de emprego: o salário” (TRT 17.ª Reg. RO 01203.2001.007.17.004 – Ac. 12.02.03. Rel. Juiz Cláudio Armando Couce de Menezes: Revista LTr, vol. 67, n.º 05, maio/2003, p. 605).

5. Correntes mistas

Há posicionamentos de doutrinadores defendendo uma posição intermediária, ou mista, como a de Mozart Victor Russomano, em seus Comentários à CLT: “…a referida norma constitucional não é auto-aplicável, de modo que as regras atuais continuam vigorando à sombra da nova Carta, até que a lei ordinária regulamentadora disponha em sentido contrário” (Rio de Janeiro: Forense, 1990. p. 716).

Também pode ser recordada a orientação jurídica de Hugo Gueiros Bernardes, em artigo sobre “Participação dos sindicatos na negociação coletiva de trabalho”: “… a re-presentação de trabalhadores, em parcela menor que a categoria (ex., trabalhadores de uma empresa ou de um estabelecimento desta) pode pertencer a uma associação profissional (associação civil com preten-sões sindicais), a qual, para negociar coletivamente (sempre em favor dos seus associados somente), deve convocar o sindicato. Se este comparecer, assume a negociação em nível amplo, representando todos os trabalhadores da empresa ou estabelecimento, independentemente de serem associados do sindicato ou da associação, ou de nenhum deles. Se o sindicato rejeitar ou negligenciar a negociação, não vemos como impedir que a associação negocie coletivamente em favor de seus próprios associados, porque a negociação coletiva, repito, não é direito do sindicato mas de trabalhadores: tanto o sindicato, quanto a associação, podem negociar, aquele em nome de todos, esta em nome de seus associados” (Curso de Direito Constitucional do Trabalho. Estudos em homenagem ao professor Amauri Mascaro Nascimento. Coord. Arion Sayão Romita. v. 2. São Paulo: LTr, 1991. p. 76).

Outra posição interessante é a defendida por Carlos Alberto Gomes Chiarelli: “Cabe informar e convidar o Sindicato para que assuma sua tarefa de copartícipe negociador. No entanto, se formalizadas todas as notificações, a entidade classista não se movimentar – inclusive quando cientificadas as associações sindicais, de grau progressivamente superior, na gradação a que alude o art. 617, § 1.º, da CLT – haverá de se interpretar a sua inação como anuência ou concordância tácita” (Trabalho na Constituição. vol. II. Direito Coletivo. São Paulo: LTr, 1990. p.84).

6. Conclusões

Assim, o tema da recepção do § 1.º do art. 617 da CLT pela CF/88 continua polêmico. A corrente positiva entende pela sobrevivência da disposição celetária, permitindo a negociação direta dos trabalhadores com os empresários, se a entidade sindical, convocada, recusar-se a cumprir seu papel. A corrente negativa manifesta-se no sentido da absoluta incompatibilidade, vale dizer, o § 1.º do art. 617 da CLT não foi recepcionado pela CF/88, em face do art. 8.º, inc. VI. Dentre as correntes mistas, uma se posiciona pela sobrevivência do texto consolidado enquanto não regulamentado o constitucional; outra, permitindo que a associação profissional se substitua ao sindicato; e, por fim, aquela que entende ser a inação sindical correspondente a anuência ou concordância tácita com a negociação direta entre trabalhadores e empresários.

Com todo respeito às opiniões divergentes, parece-nos, mesmo, que há absoluto antagonismo entre o § 1.º do art. 617 da CLT e o art. 8.º, VI, da CF (aquele não teria sido recepcionado por este). Entretanto, o debate continua em aberto até que tenhamos a palavra final da Suprema Corte a respeito do tema.

Luiz Eduardo Gunther

é juiz no Tribunal Regional do Trabalho da 9.ª Região.

Cristina Maria Navarro Zornig

é assessora no Tribunal Regional do Trabalho da 9.ª Região.

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