Visitante incomum

?Oi, primo?, cumprimentou-me a bela garota na saída da aula de inglês, tantos anos atrás. Parece que foi ontem, poderia ter sido hoje.

É estranho como as lembranças se assemelham mais ao DVD que ao VHS, não? No último a busca por uma cena é demorada, nos leva a avançar lentamente num fast-forward do inferno (que de fast não tem nada), obrigando-nos a passar em revista tantas outras cenas indesejáveis. Já na mídia digital, uma boa distribuição em capítulos deixa tudo à mão, ao toque de um dedo ou do mouse. Como agora, quando seleciono esta lembrança no meio de tantas.

Eu soube instantaneamente que ela havia mudado, e muito, só não sabia por quê. Crescêramos juntos, pelo menos depois que a amizade dela por minha irmã passou a trazê-la para nossa casa todo verão. Brigávamos muito, também, como primos e primas sabem fazer. Sua meninice e de minha irmã era por vezes irritante para o jovenzinho imberbe que já pensava em baladas e mulheres (ou, que vá, garotinhas é mais exato, mas então não o sabia) e tinha que cumprir seu cronograma de ?babá? das duas mais novas.

Por puro acaso passáramos um tempo sem nos encontrar, alguns meses, um ano, talvez, e agora ela me aparecia no final da aula com aquele jeito diferente, bonita em seu modelinho ?calça jeans camisa branca lenço no pescoço? tão comum aos anos oitenta.

?E aí, qué que ?cê tá? fazendo aqui??

?Vim te ver. Tua irmã me disse que você estudava aqui, eu sabia os dias e resolvi arriscar…?

?Que bom… E o que é que você manda??

Conversamos muito, saindo dali e indo para algum lugar que, por mais que tente, não consigo recordar. Um café, uma confeitaria talvez, não sei. Lá onde eu não sei, contou-me que tinha saído de casa, mudara-se da casa da mãe para a casa do pai, estava muito mais feliz, tinha mais liberdade, planejava fazer um curso técnico no Cefet, viajar, conhecer gente nova… E estava linda, absolutamente cheia de vida, deslumbrante ao carregar consigo e partilhar seus novos sonhos. Despedimo-nos com doçura, prometemos nos encontrar de novo e os anos seguintes nos tornaram mais que amigos, irmãos.

Logo estaríamos partilhando as noites insones do final de minha faculdade, quando saíamos ela, minha namorada e eu. Ríamos do sucesso que a prima fazia entre meus amigos, das cantadas baratas, inocentes e risíveis; dos rolos sérios, das festas em casa ou nos bares, da paixão que tinha por nosso primo em comum. Minha prima era um doce, e nos apaixonávamos todos por ela, por sua alegria, por sua vivacidade, por sua inteligência.

Acho que a última vez que nos encontramos foi no trote de minha irmã, que acabara de passar no vestibular. Encontramos com ela na rodoviária – minha namorada e eu, ela com o pai e a madrasta e pude dizer ao velho o quanto o admirava por fazer sua filha feliz como eu antes nunca havia visto. As fotos de tinta e farinha, ovos respingados e muita confusão não mentem: foi uma noite memorável.

Naquela época ninguém tinha celular, ou quase ninguém, uma vez que os ?tijorolas? eram caríssimos e difíceis de encontrar. Acho que aquele foi, inclusive, o ano em que vi pela primeira vez um celular. Por isso quando as pessoas no hospital começaram a me dizer que minha mãe havia ligado, fiquei preocupado. Coisa boa não podia ser – e não era: minha prima sofrera morte estúpida, atropelada na esquina de casa por um vizinho. Como? Morreu? Tem certeza? Não pode ser…

Partilhamos uma dor inédita e profunda, mais profunda que qualquer coisa que eu tenha sentido antes. Não agüentava olhar para ela não podia ser ela, ali – olhar para os primos, para o resto da família reunida no cemitério, olhar para mim mesmo. ?É tão estranho, os bons morrem jovens?, cantaria a Legião Urbana uns anos depois, e eu poderia entender minha perplexidade.

Acordava todos os dias e pensava primeiro nela, como uma pontada ou um raio que me pegasse de jeito logo ao amanhecer: minha prima está morta. Ao longo do dia eu esqueceria, envolvido em meus afazeres, e à noite dormiria o sono dos justos como só os médicos têm. Mas durante meses, meu primeiro pensamento era para ela: inconsciente, não-planejado, até repelido. Mas era.

Um dia nos encontramos de novo, em um sonho. Nele ela estava tão ou mais bonita que naquele outro dia, na porta do cursinho de inglês. Íamos conversando pela rua, trocando idéias e sorrisos como se tivéssemos nos visto ?inda? ontem, reiniciando a conversa a partir de uma vírgula, ironizando um ao outro com delicadeza e alegria.

Eu disse:

?Sabe, eu queria muito lhe dizer uma coisa…?

?É??

?Uma coisa que eu nunca disse, por mais que eu o sentisse de verdade… Eu amo você, minha priminha, como se fosse uma irmã…?

Foi então que, com o sorriso mais lindo do mundo nos lábios, ela virou-se para mim e retrucou:

?Eu também, primo! Não é uma pena que você nunca tenha dito isso para mim enquanto eu estava viva??

Acordei e chorei muito, enquanto a manhã nascia sobre a Água Verde. Lá do alto do prédio, em meu quarto, a cidade se espreguiçava sob os primeiros raios de sol e eu não sentia medo nenhum, apenas alegria e saudade. Sabia que fora real. Depois deste dia, nunca mais sonhei com ela, nunca mais aquele choque de acordar lembrando, primeira coisa logo ao amanhecer, que ela havia morrido. Apenas alegria. E saudade.

Renato van Wilpe Bachi é médico e escritor.

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