Enquanto o país comemora e se orgulha da primeira e histórica viagem de um astronauta brasileiro ao espaço, outros milhares de conterrâneos vivem uma realidade bem diferente, como se ainda estivessem em outro século, em que as descobertas não haviam acontecido. Sem qualquer tecnologia, é com a força braçal, muita caminhada e suor, que os coletores de material reciclável, ou seja, os conhecidos catadores de papel ou carrinheiros, sustentam suas famílias.
A comparação pode soar absurda, mas é real. A viagem do tenente-coronel aviador Marcos César Pontes, 43 anos, ocorrida em março deste ano, durou apenas oito dias, e custou aos cofres nacionais 10 milhões de dólares. Para se ter idéia, um carrinheiro, que chega a andar mais de 20 quilômetros diariamente, folgando apenas no domingo, ganha em média R$ 200,00 mensais.
Os catadores de papel podem não ter o prestígio da nação, não ter estudo ou recursos para aprimorar sua profissão, porém, mostram que a criatividade, a força física e a presença de espírito são os componentes que os incentivam a lembrar a cada dia o lema do mesmo país do astronauta: ?Eu sou brasileiro e não desisto nunca?.
Trabalho invisível e imprescindível
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| Marilza, movimento nacional de recicladores. |
Os catadores de material reciclável já fazem parte do cotidiano das cidades, mas muitas vezes nem são notados. O trabalho só não é totalmente invisível porque alguns motoristas acham que os carrinheiros atrapalham o trânsito e, quando se sentem incomodados, não economizam buzina. Porém, o que poucos sabem é que o trabalho dos profissionais da reciclagem é imprescindível para que Curitiba continue carregando o título de ?Capital Ecológica?.
Se não fosse a coleta feita por milhares de carrinheiros diariamente, a cidade certamente viraria um caos. De acordo com Marilza Aparecida de Lima, 35 anos, membro do Movimento Nacional dos Catadores de Material Reciclável, o lixo recolhido pelos carrinheiros curitibanos soma cerca de 470 toneladas por mês. ?Para se ter idéia, o mesmo trabalho feito pelo caminhão da Prefeitura, no projeto ?Lixo que não é lixo?, no mesmo período de tempo, reúne 90 toneladas?, diz Marilza.
Apesar de o quilo do material reciclável ser vendido a centavos, a coleta desse material torna-se a única opção de trabalho para muitas pessoas, principalmente aquelas que moram em áreas pobres e que não tiveram a oportunidade de estudar. Por isso, é difícil mensurar o número de pessoas que sobrevivem da coleta do lixo na capital paranaense. A última pesquisa oficial feita pela Prefeitura da cidade, em 2000, registrou a existência de pelos menos 3 mil carrinheiros. Entretanto, estima-se que em 2006 esse número já tenha duplicado.
Valorização
Muitos dos ?profissionais do lixo? ainda sofrem preconceito e são tachados como marginais ou desocupados. Por outro lado, muitas pessoas ainda se irritam com o trabalho dos catadores de papel, que deixam sacolas abertas, reviram o lixo na frente das casas e o espalham na calçada. Para reverter essa situação, ensinar o catador a exercer corretamente sua profissão e resgatar sua auto-estima, explicando que eles atuam como agentes ambientais, capazes de mudar o ciclo de limpeza urbana de muitas cidades, a ONG Lixo e Cidadania elaborou um projeto que hoje atende 18 associações de carrinheiros de Curitiba, região metropolitana e litoral.
De acordo com a coordenadora da ONG, Sueli Elizabete Westerb, o objetivo do projeto é trabalhar com a formação dos carrinheiros, diminuir a informalidade da profissão e criar condições de cidadania e inclusão social.
?Nós buscamos melhoria nas condições de vida e trabalho deles. Ensinamos sobre a importância do que fazem, como devem fazer a coleta do lixo sem sujar as ruas, ensinamos sobre a reciclagem e como devem se organizar para formar cooperativas?, conta ela.
A ONG também funciona como intermediária entre os carrinheiros e os órgãos públicos. O foco do trabalho dos voluntários é a erradicação do trabalho infantil e de jovens na coleta de lixo. ?Quando vemos uma criança com os pais, em cima de um carrinho, entramos em contato com conselhos tutelares e tentamos conseguir vagas em creches. Muitos catadores levam os filhos junto porque não têm onde deixá-los?, explica Sueli. Para os jovens, a ONG oferece projetos e cursos profissionalizantes. Também são disponibilizadas cestas básicas e vales-transporte para os mais novos, que ganham possibilidades de trabalho, além de incentivo ao estudo.
A união faz a força e os dois levam o lixo
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| Solidariedade: amigos catam papel e fazem carrocinha ?estendida?. |
Entre os catadores de papel existe concorrência, assim como em qualquer profissão. Mas entre eles também há solidariedade e união. Exemplo disso são os vizinhos Ubirajara Marcos Cavalheiro, 40 anos, que trabalha com a coleta de lixo há 20 anos, e Anibal Fernandes de Lima, 17, que está na profissão há 2. Apesar da diferença de idade e de experiência no ?ramo?, eles sabem que quando há união e estímulo, a árdua rotina parece ficar mais leve.
Diariamente os dois saem de casa cedo. Eles moram no Pilarzinho. Ubirajara vai com seu carrinho, feito de madeira, enquanto Anibal segue outro rumo com a carroça puxada pelo cavalo ?Tostão?.
Depois de passarem o dia na coleta de lixo, eles se encontram no final da tarde, no caminho de volta para casa. Cansado e com problema em um dos braços, Ubirajara sente um verdadeiro alívio quando avista o vizinho Anibal. Quando se encontram eles amarram o carrinho na carrocinha e Ubirajara senta ao lado do vizinho. Além de economizar uma boa caminhada, ele também poupa os braços e chega antes em casa. ?Quase todos os dias nós nos encontramos. Como agradecimento, às vezes eu puxo o cavalo, que quando pára demora para ?pegar no tranco?.
A gente senta na carrocinha e cada um conta como foi o seu dia.
È bom para quebrar a solidão, pois o carrinheiro geralmente trabalha sozinho o dia inteiro?, conta Ubirajara.
Minha nada mole vida
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| Não é o ?super-homem?, mas é o Sidnei! Ele carrega 400 quilos de material reciclável em seu carrinho, todos os dias. |
Seus braços parecem de aço, a bondade não cabe no coração, e a vontade de vencer o torna quase imbatível. Sidnei José de Brito Machado, 36 anos, pode ser considerado o ?super-homem? da periferia, um exemplo a ser seguido por muitos catadores de papel. Afinal, é do lixo das ruas que ele consegue obter um rendimento médio de R$ 1.200 mensais, superior ao de muitas pessoas que cursaram uma faculdade. A rotina do homem franzino, que com pouco mais de 1,60m e 59 quilos chega a coletar 400 quilos de material reciclável em um só dia, começa cedo. Ele acorda às 6h da manhã, toma um café reforçado e deixa os dois filhos e a mulher na casa onde moram, em São José dos Pinhais. Sidnei apanha o ônibus do Jardim Ipê e às 8h já está no depósito da Associação Lixo e Vida, que conta com 12 associados, no Prado Velho. Apanha o carrinho de ferro, emprestado pelo Fórum Lixo e Cidadania, que é parceiro da associação, e começa suas andanças por quilômetros de ruas de Curitiba. Sidnei conta que anda entre 25 e 30 quilômetros todos os dias. Com a técnica adquirida ao longo dos 23 anos de profissão ele consegue ajeitar o material no carrinho e carregá-lo com até 400 quilos de lixo reciclável – o peso máximo para não quebrar o eixo do ?veículo?. O peso é tanto que às vezes ele é obrigado a pedir ajuda nas ruas para abaixar a frente do carrinho. Muitas vezes, as pessoas se negam a fazer isso?, conta.
Quanto à possibilidade de facilitar o trabalho com a ajuda de um cavalo ou da adaptação de uma bicicleta no carrinho, ele é categórico. ?Prefiro fazer tudo no muque. O cavalo faz sujeira e é muito ruim andar no centro com ele. Com o peso que carrego, uma bicicleta ia pegar muita velocidade na descida e na subida ia ter que empurrar. Prefiro como está?, diz Sidnei.
Árdua rotina
No final do dia o ?super-homem? volta à associação. Quando se imagina que o dia acabou, inicia-se uma nova etapa – a da reciclagem. O material é então separado, de acordo com o tipo de papel e plástico, empacotado e pesado. A jornada então segue até tarde da noite. Lixo coletado e separado, está na hora de Sidnei voltar para casa.
Com o dinheiro que ganha, Sidnei garante que não passa dificuldades. ?A gente come bem, dá para comprar roupas novas e uniforme para meus filhos e ainda pagar a pensão da minha outra filha que não mora comigo?, diz ele…
Preconceito
Segundo Sidnei, a idéia de que os catadores de papel são marginais ainda povoa o imaginário de muitas pessoas.
É comum vê-las atravessar a rua, segurar a bolsa ou cochichar quando ele passa.
Porém, o ?super-homem? diz que quando isso acontece ele retribui a desconfiança com um sorriso. Nosso ?super-homem? estudou até a 5.º série.
Criatividade pra dar e vender
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| Pedalando, o rapaz encontrou um meio de diminuir seu sofrimento. |
Quem ganha a vida nas ruas tem que usar a criatividade para superar as adversidades. Por isso, um jovem de 24 anos, pai de três filhos, teve que arrumar uma solução para diminuir o esforço físico na hora de empurrar o carrinho. Ele tem cálculo renal (pedra no rim) e os ataques lhe causam dores insuportáveis. Para evitar o esforço nos braços e no peito, ele adaptou uma bicicleta ao carrinho de madeira. Fazendo força apenas nas pernas, o jovem, que mora em Almirante Tamandaré, consegue pedalar todos os dias até Curitiba.
?Comprei as peças da bicicleta uma a uma, e aos poucos montei. Além de fazer menos esforço, chego antes em casa?, contou. Caminhando, o trajeto durava duas horas e meia. Com a bicicleta, o tempo diminuiu em uma hora?, disse ele.
Porém, junto com as vantagens vêm os perigos. Com a bicicleta é preciso prestar mais atenção no trânsito. ?Nos cruzamento é muito perigoso. O engraçado é que todo mundo diz que mulher dirige mal, mas são elas que mais me respeitam. Os homens não têm paciência. Eles buzinam e xingam?, contou o catador.
O jovem só trabalha meio período e, por não conseguir transportar muito peso, sua renda não passa de R$ 150,00. Enquanto não está nas ruas, ele trabalha como topógrafo e ganha R$ 120,00 mensais. Por medo que o patrão descubra sua profissão de catador de papel, ele pediu para que seu nome e sua imagem não fossem divulgados. ?Não tenho vergonha de ser catador de papel, mas acho que meu patrão não entenderia.?






