General de divisão, Elias Rodrigues Martins Filho enfrentou desde a epidemia de ebola aos tiros de grupos armados que circulam entre a República Democrática do Congo (RDC). Não faltaram inimigos e ameaças para esse oficial brasileiro, especializado em operações de selva. Elias foi selecionado pela ONU para comandar os 15,4 mil homens de 50 países da única força de combate das Nações Unidas, a Monusco, com a missão de proteger a população e combater os grupos armados no Congo. Após dois anos, deixa o país com 75% do território pacificado – Elias será substituído por outro brasileiro, o general Ricardo Costa Neves. “Em menos de dois anos, se o governo congolês trabalhar com a Monusco, será possível estabilizar o país.” A seguir, trechos da entrevista.

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Qual os principais desafios enfrentados hoje pela Monusco?

Os principais desafios estão ligados ao mandato: a proteção de civis em um país com mais de 80 milhões de habitantes, 2.º maior da África e com enormes riquezas naturais. Ele é aumentado pelo fato de o problema vivenciado pelo país é também regional e requer uma solução que envolva os países da África Central, em particular a República Centro-Africana, o Sudão do Sul, Uganda, Ruanda, Burundi e Tanzânia. Por fim, talvez, o desafio mais relevante para o cumprimento do mandato, refere-se ao necessário apoio e cooperação do país anfitrião, a RDC. É fundamental entender que não há solução puramente militar; que a solução será eminentemente política. Ao componente militar caberá exercer as pressões para que se crie um ambiente favorável à solução política. Se não houver uma forte cooperação e confiança mútua entre as Forças Armadas da RDC e a Força de Paz, as dificuldades e os desafios serão obstáculo a qualquer êxito.

Qual a situação enfrentada pela Monusco em relação à ação de grupos armados na RDC?

A situação na RDC tem apresentado melhoras sensíveis, mas ainda oferece sérias ameaças às populações locais, às Forças Armadas do país e aos militares da Monusco. As maiores ameaças hoje ocorrem no leste do país, na fronteira com Uganda, Ruanda e Burundi. Nessa região estão concentrados grupos armados com origem naqueles países e que operam no Congo. Estes grupos realizam saques, estupros, cobrança de taxas ilegais e, inexplicavelmente, realizam massacres de populações indefesas. Sequestram crianças: os meninos viram soldados e as meninas, escravas sexuais ou esposas. Esquartejam bebês, matam mulheres grávidas e idosos a machadadas. Não visam a conquista de áreas ou cidades, mas levar o terror à população. Tais atos são muitas vezes escudados por um conflito étnico de séculos que persiste em áreas da RDC.

O senhor teve baixas em seu contingente em combates?

Felizmente, não houve baixas de brasileiros no meu comando. Entretanto, em operações ofensivas houve 8 baixas de militares (do Malawi e da Tanzânia) em novembro de 2018.

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As Forças Democráticas Aliadas (originárias de Uganda) e as Forças Democráticas de Liberação de Ruanda (acusado do genocídio de 1994, em Ruanda) são os principais grupos rebeldes?

Sim, esses grupos, em particular a ADF (Forças Democráticas Aliadas, na sigla em inglês), estão entre as maiores ameaças à população e às Forças de Segurança congolesas. Entretanto, outros grupos, Mayi-Mayi e NDC-R, por exemplo, ainda são motivo de preocupação.

O senhor falou em divisões étnicas. Elas ainda fazem parte do problema na região?

Fazem sim. Nunca dei importância à questão étnica, pois pensava que tudo se resumia à luta por poder, mas, na minha estadia ali, revi minha posição. O Congo é um país com mais de 340 grupos étnicos – muitos se odeiam desde nascença. Esse problema está sendo amenizado. As disputas precisam ser administradas. Quando cheguei, a área de Kasai, na fronteira com Angola, era das mais conflituosas. Ali havia duas etnias apoiadas por grupos armados, o Kamwina Nsapu e o Bana Mura. Essa região foi pacificada.

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Que situação o sr. encontrou ao chegar no Congo?

Quando eu cheguei havia uma hostilidade forte. Nós éramos atacados por grupos armados. Hoje, eu diria que 75% do Congo está estabilizado. Os recentes problemas em Beni (manifestações contra a ONU) se devem à ação do ADF. A população daquela área (fronteiriça com Uganda) estava revoltada com a ONU. Ela achava que a ONU tinha de ser mais dura em relação aos grupos. Mas o Congo é um país soberano; não é um estado colapsado. É um Estado que sofre problemas de segurança, que têm repercussão regional. Fizemos operações conjuntas e tivemos sucesso, mas não fomos autorizados a fazer ações unilaterais sem o concorde do país; e ele não deu durante muito tempo neste ano.

Alguma razão para a liderança congolesa não trabalhar com a ONU na fronteira com Uganda?

Há várias razões para isso. A liderança da missão sempre teve receio de danos colaterais, o que sempre consideramos em nosso planejamento. De setembro em diante, quando se aproximaram as eleições presidenciais, decidiu-se que não seria recomendável a ONU fazer operações com o Exército congolês nessa área, que era de grande influência da oposição, ainda mais quando a liderança de Kabila (Joseph Kabila) era colocada em questão (a oposição venceu a eleição, encerrando 18 anos de governo de Kabila). Isso poderia ser mal interpretado.

Qual a evolução da relação com a Monusco?

A relação com as tropas da Monusco foi comprometida, a partir de 2015, como consequência de um processo de aplicação de uma política de Direitos Humanos que apontou vários chefes militares do país como responsáveis por violações e abusos. Todavia, têm havido melhoras significativas e as relações hoje, embora estejam longe do ideal, têm sido bastante cordiais.

O senhor teve baixas em razão de doenças tropicais?

Um observador militar da Ucrânia morreu de malária.

Como o senhor e sua tropa enfrentaram o surto de Ebola?

A maior e mais efetiva medida de prevenção é a ausência de contato físico. Aperto de mãos ou qualquer outro tipo de contato devem ser evitados. Essa é a medida mais efetiva para a proteção e combate ao vírus. Neste ano, foi aplicada com muito sucesso a vacina contra o ebola, com uma taxa de 97% de efetividade contra a doença.

Até quando a Monusco será necessária para a RDC?

Tem havido pressão dos países patrocinadores com recursos financeiros e do Congo para que a Monusco apresente um plano para encerrar a missão. As últimas avaliações realizadas na Missão, em outubro, estabelecem um prazo de três anos. Se houver vontade política do governo da RDC e de suas Forças Armadas, em cooperação com as Forças de Paz, seríamos capazes de resolver o problemas em menos de dois anos. A violência se reduziria a níveis que podem ser administrados pelas Forças Armadas da RDC e pela Polícia Nacional e deixaria de ser ameaça à segurança regional.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.