A noite em que Jesus visitou a favela

É noite de Natal. Mas é também uma noite igual a todas as outras noites, passadas ou vindouras. Lençol translúcido feito de negrume, silêncio e solidão, a noite vai se estendendo preguiçosamente sobre a favela. Esta lembra um clamor surdo de barracos feitos de ripas, lata e desalento, e ruelas por onde o lixo se esparrama, fétido. No pequeno morro que domina o casario irregular estão agrupados cinco meninos. Eles são os atores-mirins que irão desempenhar os seus papéis, num drama curto, estão vestidos a caráter: descalços, sujos, maltrapilhos. Pobres personagens de um drama tão rico, até pelo final feliz. Sentam-se em círculo, no chão duro de terra batida. Nomes? Simples nomes de artistas quase anônimos oficiando a sua liturgia tragicômica quotidiana, no picadeiro do mundo. O mais novo, que não tem mais de sete anos, chama-se Zé. Simplesmente, Zé. O mais velho, o Carlão, talvez já tenha feito doze. Os outros? Pé Ligeirinho, Lico e Chiquinho. Moleques, piás, lembram vira-latas em forma de gente. Tristes vira-latas. Ninguém enxerga neles, quando perambulam à toa pelas ruas da cidade, aquilo que eles realmente são: pobres, tristes crianças ófãs de pais, mas tendo por madrasta a miséria. Curtem silenciosamente aquilo que não têm – e nunca terão: uma infância alegre, feliz, sonho impossível, miragem num deserto de areias escaldantes, infinitas. São filhos dos labirintos da noite e da sarjeta. De onde vêm eles, pés doridos, machucados pelas pedras e pelos espinhos do tempo e da vida? Vêm por certo da placenta dos becos, do útero das vielas, da volúpia às avessas do desamor. E têm qualquer coisa, coitados, de predadores de duas patas na floresta dos dias, em luta pela sobrevivência. (E a culpa é nossa). Trazem tatuadas no olhar a ferro e fogo as impressões digitais da fome antiga, e na epiderme da alma as cicatrizes pungentes da dor e do cansaço. Do cansaço da dor. (E a culpa é nossa). Apesar de tudo, às vezes cintilam no fundo das suas pupilas réstias de luz ainda não de todo extinta. E sonham. Sim, inexplicavelmente ainda são capazes de sonhar. E cultivam, nos seus exíguos jardins privativos, as violetas e os malmequeres humildes da esperança. Que importa se murcham quando a noite de basalto desmorona sobre o mundo, em ruínas de silêncio e escombros de solidão? Voltarão a florir. Sim, hão de voltar a florescer quando as orquídeas da madrugada, beijadas pela brisa tênue, desabrocharem no céu, nas longas, lentas, lânguidas manhãs vegetais. Não, o desespero ainda não tomou por inteiro a cidadela das suas almas sitiadas. Ainda não. Mas como podem essas pequeninas, cândidas almas que Deus fez imortais, resistir ao assédio do monstro sinistro, dentro de vasos de argila tão frágeis? Resistem. Por enquanto resistem, apesar de tudo. Mas até quando conseguirão resistir? Se alguém perguntar a um deles o que vai querer ser na vida, as respostas virão perfumadas de um leve, muito leve esperança.

– Eu quero ser jogador de futebol. – A obsessão da bola, o apelo dos estádios e dos tapetes verdes, o sonho do estrelato possível. Pelé, o modelo.

– Eu vou ser médico. – Vou ser: uma vontade forte em embrião.

– E eu, talvez, engenheiro. – Talvez. A esperança permeada pela dúvida.

– Aviador. – A saudade dos latifúndios do céu, ou o desejo incontido de fugir da desolada terra dos homens?

Só o quinto guri não responde. Não sabe. talvez não queira ser nada. Talvez prefira continuar sendo menino a vida inteira. Limita-se a sorrir. Mas há no seu sorriso pálido um não sei quê de amargo, como se ele fosse, não a sutil emanação dos recessos da alma, mas um esgar azedo à flor dos lábios ressequidos. É a exceção. O Lico é a exceção. Já os outros não perderam ainda o dom mágico de construir castelos sobre areias douradas, na orla da praia da imaginação, fitando o infinito mar do real. Porém, entre uma esperança irrealizável e um sonho impossível, o que resta? a Terra de ninguém, o terreno baldio do quotidiano, povoado de urtigas e cobras e urubus negrejantes, flâmulas de luto adejando no espaço.

Sentados em círculo, os meninos conversam, animados, sob o alpendre antiqüíssimo da noite de ônix, pontilhada de estrelas, pirilampos congelados. Sonhos. Sonhos expressos em palavras que se elevam como volutas sonoras, espécie de incenso do turíbulo sagrado das gargantas infantis. Só o Lico, sempre cético, não diz nada. Não consegue sonhar, como os outros. Não consegue ou não sabe? Os outros falam, falam, vão contando os episódios de mais um dia que repetiu a monotonia de tantos – um deserto árido com breves oásis verdejantes. Um cheirinho de cola, uma fumacinha rápida “daquilo”, o êxtase indizível à frente das vitrines das confeitarias – formas exíguas de escapar à tirania da realidade. Mas há também emoções desatadas. O grito da jovem quando Pé Ligeirinho arrancou a bolsa das suas mãos e se perdeu entre os transeuntes, à maneira de um torrão de açúcar que se dissolve numa xícara de café. O furto na loja de armarinhos, e a imprecação irada do turco simpático, de grossos bigodes triunfais – “béga ladrão!” – e a fuga excitada, perseguido pelo “seu” guarda, a lei em forma de gente. Mas o que é a lei, na lagoa dos trombadinhas, em face do mar dos trombadões de colarinho branco – mas sujo?

Moleques, piás, andarilhos do asfalto, miúdos bandeirantes das ruas. Desbravam florestas de latas de lixo, disputando aos cães em busca de um osso, restos de comida. E nesses instantes, mais que em quaisquer outros, parecem membros enjeitados da humanidade – quando são irmãos nossos! De repente, a conversa do grupo sentado torna-se mais grave. Parecem especular. Ou talvez filosofem, quem sabe?

– Tu acredita em Deus?

– “Credito” não…

– E você?

– Sei não. O pai do Juca do bar diz que Deus existe. E ele sabe das coisas. Tem o quarto primário…

– Pois eu acho que Deus existe. – O Chiquinho falou, compenetrado.

– “Cumé” que tu sabe? – Havia interesse na voz do Ligeirinho.

– Sei, ora. – Sabia. Simplesmente sabia. Não é isso mesmo a fé? Fé não é simplesmente crer – é saber.

– É como é que é Deus? – O Lico, descrente mas curioso, fez a pergunta.

– Um velhinho igual a Papai Noel…

– Tão velho assim?

– Mais velho ainda.

– E ele sabe tudo, tudo?

– Tudinho…

Entreolharam-se em silêncio, mudamente – mas os olhos falavam, na sua admirável linguagem sem palavras. mas existirá outra mais eloqüente? O silêncio alastrou-se, clareira aberta num bosque de palavras. A mansidão da noite cobria tudo com seu lençol de cambraia muito negro. Quase ao mesmo tempo, todos se deram conta de que os estômagos doíam. tinham fome. Foi então que, vindo das entranhas da noite, outro menino foi se aproximando do grupo. Maltrapilho como eles, embora mais limpo. E menorzinho. Teria cinco ou seis anos? Fitando o grupo com olhos brilhantes – e cada um dos cinco teve a nítida impressão de que o visitante olhava para ele em particular – o menino disse apenas:

– Ôi, gente!

E fez um gesto de saudação com a mão esquerda. Na direita trazia um pequeno embrulho.

– Pode chegar, companheiro – falou o Carlão, porta-voz da curriola. – E vai sentando…

O desconhecido sentou-se entre o Zé e o Chiquinho. E havia no olhar dele um brilho estranho, que passou despercebido. E ele fez ouvir de novo a sua voz, que tinha um timbre de cristal:

– Vamos comer?

– Boas palavras, irmãozinho… – O Carlão tinha estampada na face uma expressão radiante. A possibilidade de matar a fome alegrava-o. O outro abriu o pequeno embrulho: pão e frutas – banana, maçã, uva, manga, passa. Não era grande coisa, em termos da quantidade. Os cinco olharam uns para os outros, como se perguntassem: “isso” vai dar para todos nós? O recém-chegado, com gestos quase solenes, rituais, serviu a cada um deles. Pão e fruta. Começaram a comer todos, em silêncio. Mastigavam lentamente, talvez para sentir mais longamente o sabor da comida escassa. E o menino serviu-os de novo. E todos continuaram comendo, e os olhos pareciam dizer: que bom! Era a sua primeira ceia natalina. E certamente não seria a última. Haveria outras.

Continuaram comendo. Há quanto, quanto tempo não comiam assim?

– Como é, estão gostando?

Na voz do menino parecia haver a música das esferas. E nas suas pupilas brilhava a luz de uma galáxia longínqua. Foi então que a voz meio nervosa do Carlão se fez ouvir:

– Como é que pode? Você trazia um embrulho pequenino, à toa, deste tamanho – e fez um gesto descritivo com as mãos – e nós estamos comendo, comendo à farta, e a comida não acaba nunca… – Havia suspeita no seu olhar. – Por acaso você trabalha em circo – ou é mágico?

Ele negou com um movimento de cabeça, sutil. E falou de novo, com a voz cantante de arroio cristalino:

– Preciso ir andando. É tarde…

– Já? estranhou o Carlão.

– Sim, é muito tarde. A minha mãe talvez ande à minha procura, como da outra vez…

– Que outra vez é essa que tu tá falando?

– Bem, isso é segredo… – E sorria, misteriosamente.

Com outro gesto de despedida que parecia uma bênção, foi embora. E logo desapareceu na escuridão. Havia agora neles uma sensação de paz, de plenitude interior, de bem-estar físico. Estavam saciados. Saciados por aquele pão maravilhoso, de sabor indizível, por aquelas frutas suculentas e doces – nunca haviam comido algo assim. Mas saciados sobretudo por aquela voz que tinha a maciez das pétalas e a doçura do mel.

– Quem era ele? – A voz do Zé riscou o espaço como fósforo em lixa.

– Não sei, não. Mas desconfio que… – O Carlão começou a falar e parou.

– Pois eu sei quem ele é – disse o Chiquinho. – É o Menino Jesus.

– O quê? Tá brincando…

– Era ele. – A certeza, dura como rocha.

E de repente, a simples possibilidade de que Chiquinho pudesse estar dizendo a verdade, acariciou as suas mentes. Seria Ele, de fato? Era bom demais para ser verdadeiro. E por que não? Afinal, não era essa a Sua noite, a Sua antiga e sempre nova noite de Natal? É certo que, ali, na favela, não havia sinais do tempo natalino. Só o som de música, que um alto-falante trazia de longe, fazia lembrar a festa magna da Cristandade. Na cidade, porém, eles havia visto por toda a parte as marcas da sua presença – pinheirinhos grávidos de luzes coloridas piscando, presépios com a Sagrada Família e pastores, feitos de barro e sol e luar, vitrinas abarrotadas de frutas e doces, ruas feericamente iluminadas, e gente, sobretudo gente, muita gente andando, apressada, acotovelando-se nas esquinas, carregando montes de presentes – mas com as almas vazias. Ou melhor, cheias – de nada.

Ah, como seria melhor um Natal diferente, sem a parafernália das coisas materiais, comes e bebes que apenas alegram os olhos e os estômagos, e com mais luz e amor dentro dos corações!

– Foi ele – repetiu o Chiquinho quase em surdina, expressão sonhadora, como se falasse consigo mesmo.

Os outros moveram a cabeça, em muda concordância. Sim, tinha sido Ele, só podia ser Ele, o Deus infante. Vindas de longe, nas asas benfazejas da brisa, as vozes doces dos anjos de Belém – nesta noite, de novo, a sucursal do céu – fizeram-se ouvir sobre o pano de fundo da música longíngua de um alto-falante, sussurrantes.

– Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade!

E o som das vozes puríssimas, mais pressentidas do que escutadas, foi se espalhando, ungüento mágico, nas pequeninas altas em flor. E os olhos dos piás, muito abertos, pareciam soletra no céu um alfabeto de estrelas, lantejoulas feitas de ouro e luz e espanto.

Esparramados no chão, cobertos misericordiosamente pela noite maternal, com os corações em festa, cheios de uma alegria, de um júbilo que não eram deste mundo, da terra dos homens precários, adormeceram logo. E todos sonharam que o Menino Jesus havia estado entre eles, igual, exatamente igual, divinamente igual a um menino qualquer, em trânsito pelas veredas áreas do mundo, longe, muito longe do paraíso perdido…

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