Marido pode cometer estupro contra a mulher

Antigos acórdãos, que retratam provecta concepção “machista” da sociedade, afirmam que o marido não poderia praticar estupro contra a mulher. Assim, por exemplo: Inadmissibilidade da prática do crime do marido contra mulher – TAGB: “Exercício regular de direito. Marido que fere levemente a esposa, ao constrangê-la à prática de conjunção sexual normal. Recusa injusta da mesma, alegando cansaço. Absolvição mantida. (…)” (RT 461/44 apud MIRABETE, Julio Fabbrini. Código penal interpretado. São Paulo: Atlas, 1999. p. 1246).

Melhor caminho vem sendo trilhado por outras decisões mais consentâneas com a sociedade atual: Admissibilidade da prática do crime pelo marido – TJRS: “Não há falar em relação sexual admitida, com base em alegação de congressos carnais anteriores, pois até o marido pode ser agente ativo desta espécie de delito.” (RJTJERGS 174/157 apud MIRABETE, Julio Fabbrini. Código penal interpretado. São Paulo: Atlas, 1999. p. 1246).

No mesmo sentido: “TJMT – HC – Rel. Mário Aleyet – RT 704/369” (FRANCO, Alberto Silva. Código penal e sua interpretação jurisprudencial: parte especial. 6.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 2895. v.I t. II.)

Lógico que quando a prova é precária deve-se absolver o acusado, por força do in dubio pro reo: Dificuldade de prova no estupro do marido contra a mulher – “Estupro – Prova – Declaração da ofendida – Insuficiência – Vítima e agente que são cônjuges – Situação de grande animosidade entre as partes indicada pelo conjunto probatório – Absolvição decretada” (TJSP, Ver. 275287-3, São José do Rio Pardo, 3.º Grupo de Câmaras Criminais, rel. Gomes de Amorim, 15022001, v. u., JUBI 56/01 apud NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 2.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 656-657).

Na doutrina, nos dias atuais, é praticamente unânime a admissibilidade do delito de estupro pelo marido contra a mulher. Vejamos:

a) ELUF, Luiza Nagib. Crimes contra os costumes e assédio sexual: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1999. p. 21-23: “Trata o estupro marital, repetindo “minha total discordância de qualquer entendimento que justifique a violência marital seja para qual for a modalidade de relacionamento sexual dentro do casamento” (p. 22-23).

Menciona, ademais, o professor de ética da Universidade de São Paulo Renato Janine Ribeiro que afirma: “pode ser punido como estuprador o marido que força a mulher a ter relações sexuais com ele” (p. 23).

b) MIRABETE, Julio Fabbrini. Código penal interpretado. São Paulo: Atlas, 1999. p. 1245-1246: “Traz a divergência na doutrina, mencionando que “embora se tenha negado essa possibilidade, quando não há justa causa para a recusa da mulher, entendemos que há crime na conjunção carnal forçada do marido contra a esposa por ser ato incompatível com a dignidade da mulher. A recusa imotivada da mulher pode, entretanto, dar causa a separação judicial” (p. 1245-1246)

c) NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 655-657: “Tal situação não cria o direito de estuprar a esposa, mas sim o de exigir, se for o caso, o término da sociedade conjugal na esfera civil, por infração a um dos deveres do casamento” (p. 655).

“Há penalistas que sustentam a possibilidade de a mulher não consentir na relação sexual apenas no caso de ter justo motivo” (p. 656).

Finaliza com Nilo Batista “`a posição predominante pode assim ser sintetizada: o marido não pode cometer violência contra a mulher, salvo se for para obrigá-la à conjunção carnal. Se isto faz algum sentido, é o sentido de que a bestialidade e o desrespeito só encontram guarida no matrimônio’ (Estupro – O marido como sujeito ativo, Decisões criminais comentadas, p. 71)” (p. 656).

d) DELMANTO, Celso et. al. Código penal comentado. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 413: “Quanto à possibilidade de o marido ser agente de crime de estupro praticado contra a esposa, a doutrina tradicional entende que não pode sê-lo, porquanto seria penalmente lícito constranger a mulher a conjunção carnal, sendo que esta, por si só, não é crime autônomo. Assim, embora a relação sexual voluntária seja lícita ao cônjuge, o constrangimento ilegal empregado para realizar a conjunção carnal à força não constitui exercício regular de direito (CP, art. 23, II, 2 parte), mas, sim, abuso de direito, porquanto a lei civil não autoriza o uso de violência física ou coação moral nas relações sexuais entre os cônjuges (Celso Delmanto, `Exercício e abuso de direito no crime de estupro’, in RT 536/257, RDP 28/106 e ROAB 13/105)” (p. 413).

Traz outros autores com posição semelhante:

“João Mestieri, Do delito de estupro, 1982, p. 57; Nilo Batista, Decisões criminais comentadas, 1976, p. 68; Damásio de Jesus, Direito penal: parte especial, 1996, v. III, p. 90” (p. 413)

e) JESUS, Damásio de. Direito penal: parte especial. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 1998. v. 3. p. 95-96: “Assim, segundo alguns autores, não haveria crime caso o marido constrangesse a mulher à conjunção carnal, em razão do direito daquele de exigir desta a satisfação sexual” (p. 95). “Outros autores (…) caso a negativa da mulher se apóie em motivo justo, haverá crime” (p. 95). “Entendemos que o marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a própria esposa. Embora com o casamento surja o direito de manter relacionamento sexual, tal direito não autoriza o marido a forçar a mulher ao ato sexual” (p. 95)

Direito é cultura. Na medida em que a sociedade avança em suas concepções, o Direito, como espelho dessa sociedade, também sofre injunções. Deve se adaptar a cada momento histórico. Houve época em que a mulher era propriedade do marido, que a mulher não votava, que não tinha direitos etc. Tudo isso sofre profunda alteração, tendo em vista o princípio da dignidade da pessoa. Ninguém pode ser forçado a um ato sexual sem consentimento. Ninguém é obrigado a se envolver num ato sexual contra sua liberdade. Não há dúvida que a recusa reiterada e sem que subsista nenhum impedimento, por parte da mulher, ao ato sexual, pode dar ensejo a conseqüências civis. De qualquer modo, isso não conduz a se afirmar que a mulher está sujeita a sofrer todo tipo de violência praticada pelo próprio marido. Em tese, portanto, não há dúvida que o marido pode ser sujeito ativo do crime estupro contra a própria mulher.

Luiz Flávio Gomes

é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madrid, mestre em Direito penal pela USP, co-fundador e primeiro presidente do IBCCRIM e diretor-presidente do Ielf (Cursos jurídicos transmitidos em tempo real para todo país –
www.ielf.com.br).

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