Márcia Novaes Guedes analisa temas atuais do Judiciário, sindicalismo e mundo do trabalho

Escrevo em homenagem à memória do dr. Wilson Teixeira, colega no início de nossa advocacia, resistente na luta contra a ditadura militar, militante político e social, mas, antes de tudo, um homem simples, humilde, solidário. Uma honra ter sido seu companheiro na construção de uma sociedade justa, fraterna e igualitária.

Encaminhada pelo dr. Geraldo Serathiuk, entrevista do jornalista Léo Arcoverde, da revista Caros Amigos (www.carosamigos.com.br), com a dra. Márcia Novaes Guedes, juíza titular da Vara do Trabalho de Guanambi, na Bahia, que reproduzo parcialmente. Ela desenvolve desde 1997 uma pesquisa sobre assédio moral no ambiente de trabalho. Antes de ingressar na magistratura, em 1995, advogou para a Comissão Pastoral da Terra e sindicatos de trabalhadores rurais. Ainda estudante de Direito, na década de 80, estagiou como assessora jurídica do Sindicato dos Químicos e Petroleiros da Bahia, na época presidido pelo hoje governador Jaques Wagner. É casada com Ângelo Costa, coordenador da CPT e presidente do Centro de Agroecologia do Semi-Árido. Atendendo a convocações do TRT, atuou na Vara do Trabalho de Bom Jesus da Lapa, onde interrogou ex-trabalhadores da então recém-privatizada Coelba – Companhia de Energia Elétrica do Estado da Bahia, que haviam sofrido assédio moral. Textos de sua autoria são postados periodicamente na seção de Comportamento da revista eletrônica Terra Magazin, abordando temas como lucro dos bancos, trabalho escravo, política e assédio moral. Publicou um livro sobre o Terror Psicológico no Trabalho, pela Editora Ltr. É integrante do Instituto Baiano de Direito do Trabalho e da Associação Juízes para a Democracia. Eis alguns pontos da entrevista:

?As ações de combate e erradicação do trabalho escravo ficaram recentemente suspensas por quase um mês por conta da acusação partida de dois senadores – Flexa Ribeiro (PSDB/PA) e Kátia Abreu (DEM-TO) – de que fiscais do Ministério do Trabalho estariam praticando abuso de poder. Como a senhora vê isto? O Congresso Nacional se mostra, de certa forma, conivente com o trabalho escravo??

Enquanto instituição, nós temos que defender o Congresso Nacional o tempo inteiro, porque não conhecemos outro mecanismo mais democrático do que este, do que a representação. Então, nós votamos nos deputados e nos senadores para que estes nos representem. A gente espera que o Congresso seja o espelho da nossa sociedade. Infelizmente, o que nós vemos é a existência de pressão. E, nesse caso, a bancada ruralista, com um número significativo de deputados e senadores, domina o Congresso Nacional. É óbvio que esses parlamentares não têm o interesse em democratizar as relações de trabalho. Isso já ficou provado historicamente. Nós vimos como a bancada ruralista se posicionou em relação à reforma agrária no período de 1988. Trabalhou em bloco no sentido de evitar o avanço da legislação. Durante todos esses anos, sabemos que tem travado o processo de democratização das relações sociais. É a bancada ruralista. É um lobby extremamente poderoso. E, infelizmente, nessa questão do trabalho, mais uma vez vimos a força dessa bancada. Por outro lado, as organizações populares, as forças democráticas da nação, também estão conseguindo vitórias. O grupo móvel se organizou no governo Fernando Henrique Cardoso mas foi no atual governo que conseguiu libertar o maior número de trabalhadores submetidos à condição semelhante à de escravo. Então, tem-se conseguido uma vitória bastante grande. No Araguaia, a Justiça do Trabalho se organizou em 2005. Meu colega João Humberto Cesário (da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso) tem uma posição extraordinária como magistrado, porque toma como paradigma das suas decisões o direito fundamental da pessoa humana. Essa é a chave para se fazer justiça. Tomar como modelo os direitos fundamentais da pessoa humana. João pegou casos de trabalho escravo em que havia pedido de indenização por dano moral coletivo de R$ 16 mil e condenou a empresa em mais de R$ 1 milhão. Como ele pôde fazer isso? E é uma decisão extraordinária, deu certo, foi mantida no tribunal, porque ele se baseou nos direitos fundamentais da pessoa humana.

?A senhora chegou a escrever que o brasileiro é, certas vezes, indiferente à injustiça social. Que o brasileiro quando vai a um casamento não se preocupa se os ?serviçais? têm os seus direitos básicos respeitados. Por que a senhora acha isto??

Isto vem da minha observação do cotidiano. Nós, juízes, temos por obrigação, segundo o Artigo 337 do Código de Processo Civil, ao decidir, também levar em consideração a nossa experiência. Muitas vezes, não é só a lei. Um juiz não pode simplesmente ficar no seu gabinete sentado e não ver a vida ou apenas ver a vida como Chico Buarque cantou em A banda, vendo a banda passar pela janela. Um juiz deve, mais do qualquer outro, ser um arguto observador da sua realidade social, para inclusive se policiar no sentido de não cometer, na sua vida privada, ilícitos ou práticas condenáveis. Tem que ter coerência. A gente tem que ser como Paulo Freire ensinou. É preciso que o nosso discurso fique cada vez mais próximo da nossa prática, até se fundirem completamente.

?É verdade que o brasileiro, além de medo, tem desprezo pelos pobres??

Isso que escrevi também vem da observação e das leituras dos clássicos da sociologia brasileira. Como esconder o que a gente leu em Josué de Castro? Como esconder o que a gente leu em Florestan Fernandes? Em Casa Grande e Senzala? Os Sertões de Euclides da Cunha. Só quem não leu ou não quer observar ou ler.

?A senhora questiona, inclusive, a República e a economia de mercado, afirmando que estas foram forjadas com a exclusão dos ex-escravos, considerados sub-raça destinada ao desaparecimento?.

Foi o que aconteceu aqui no Brasil. Quando, em 1850, já se discutia seriamente a libertação dos escravos porque a Inglaterra já fazia a grande revolução industrial. O que é que se fez aqui no Brasil? Fez-se uma lei de terra para impedir que os escravos que viessem a ser libertos pela Lei do Sexagenário e os que nasciam pela Lei do Ventre Livre pudessem ter acesso à terra. Posteriormente, o processo de libertação dos escravos não foi exatamente uma conquista.colocado pela ideologia dominante como uma dádiva. Mas, principalmente, interessava ao projeto capitalista que começava a adentrar o país. E o que a elite brasileira vai fazer? Essa elite marginal vai buscar fora o povo que ela quer formar. Havia textos escritos pelos intelectuais da época que diziam que os negros não tinham futuro e que se tratava de uma raça inferior. E precisava, então, trazer o ?milagre?. Por isso que os grandes teólogos da Teologia da Libertação sempre nos alertaram que o milagre era esse povo ter sobrevivido, apesar de toda a guerra que se fez contra ele, de não deixar sobreviver, de cortar todas as veias que pudessem levar sangue, alimento. E esse povo conseguiu e até hoje reivindica seus direitos. E estamos avançando. Eu vejo com otimismo porque olho para trás e vejo o quanto a gente já caminhou. ?As empresas banalizam o mal, praticam o sofrimento, pisa no outro. Essa é a arma?.

?Em setembro, os bancos anunciaram lucros recordes, em grande parte, devido ao aumento espetacular de 250 por cento nas tarifas. Este lucro, para a senhora, se deve ao fato de os bancos terem se modernizado junto com a degradação das condições e do ambiente de trabalho, uma vez que bancários, com ou sem vocação, acumulam mais e mais funções??

Deve-se a isso, sim. A preocupação é somente com os números e não com o ser humano. O processo de globalização é visto, não apenas por mim como vários outros estudiosos, como ruptura, no mesmo sentido que aconteceu no processo nazista. O totalitarismo nada mais é do que a ruptura com a tradição filosófica e religiosa que tinha como centro o homem, o ser humano como valor fonte de todos os valores. O processo de globalização rompe com essa tradição. O ser humano desaparece, deixa de ser o valor central. E quando você degrada o ambiente de trabalho para permitir a modernização, você pode adotar as práticas totalitárias e banalizar o mal. Daí vem o medo de perder o emprego e de ser excluído, uma vez que desemprego significa exclusão social. Não é uma coisa circunstancial e sim estrutural. Recentemente o ministro Delfim Neto escreveu um texto, mostrando como o sistema capitalista, sobretudo, os grandes executivos, comemoravam justamente não o aumento do emprego, mas o contrário, o desemprego. Nas bolsas de valores, isso era visto da seguinte forma: a economia descontaminada dos valores morais. Passaria a não ter responsabilidade social e para com a vida das pessoas que trabalham. Hoje, uma grande empresa pode se organizar com um computador e um celular. É volátil, muda de um lugar para outro, não cria raízes. É preciso que a gente denuncie esse fato. Uma coisa é o medo que bloqueia a ação das pessoas, a organização, a reação ao sofrimento no trabalho. E outra coisa é o zelo. Eu estive em Auswitch para conhecer aquilo de perto durante o doutorado. Hitler não teria conseguido fazer com que um campo de concentração com mais de três milhões de pessoas funcionasse se não houvesse, além do medo, o zelo. Ele conseguiu a colaboração dos condenados, dos judeus. É muito triste e duro falar isso, mas ele conseguiu. No mundo do trabalho, os empregados, na grande maioria, trabalham com eficiência, com dedicação, com seriedade, se empenham para que o sistema funcione, dê certo. Agora, de um lado as empresas banalizam o mal, praticam o sofrimento, aí um pisa no outro, porque estão pisando nele, dando início a um ciclo vicioso. Essa é a arma. Só está funcionando porque os trabalhadores estão colaborando.

?Pessoas empregadas no serviço de call center dos bancos trabalham seis horas diárias, só que têm apenas 15 minutos para almoçar, ir ao banheiro ou resolver assuntos particulares. Nas outras cinco horas e quarenta e cinco minutos, não podem sequer levantar da cadeira. Trata-se de um exemplo claro da banalização do mal no trabalho??

É o novo modo de exploração intensiva do trabalho vivo. Nós, juízes, começamos a condenar os bancos no pagamento de horas extras porque a legislação diz que o bancário não pode trabalhar mais do que seis horas e dá apenas quinze minutos para refeição e repouso. Só que os bancos conseguiram construir um processo de concentrar o trabalho dessa forma, reduzindo o quadro e obrigando o funcionário a trabalhar as cinco horas e quarenta e cinco minutos fazendo a mesma coisa sem nem mesmo poder se levantar. O trabalho está completamente concentrado. Já tem notícias até de que num supermercado, no Chile, as caixas usavam fraudas. Isso pode ser revertido. Depende da organização sindical, não tem outra forma. A história humana é essa. O direito do trabalho nasceu como um crime. O primeiro direito do trabalho é o direito coletivo, o que se pratica na Europa. A lei é, assim digamos, uma exceção. Lá, as relações trabalhistas são regidas pelos contratos coletivos. E, no século 19, fazer greve era crime. Mas nem por isso os trabalhadores deixaram de se mobilizar.

?De que forma as pessoas podem se defender disso? A ação sindical organizada é a saída??

É fundamental. A grande questão é que os sindicatos passaram batido no processo de modernização, de globalização. As entidades sindicais sempre foram formadas por grandes dirigentes de esquerda e a esquerda nunca levou em consideração o sofrimento pessoal e individual, porque havia o medo de que isto se transformasse numa questão, digamos, burguesa. E o grande desafio dos sindicatos sempre foram as questões coletivas e, nesse processo de apenas ver o coletivo, os sindicatos não viram basicamente o sofrimento no trabalho, provocado pelo processo de exploração do próprio trabalho, que é terrível. Os sindicatos têm uma dificuldade muito grande de lidar, por exemplo, com a questão da doença no trabalho. A coisa sempre cai para o assistencialismo, mas não se trabalha isso politicamente e essa que é a grande questão, a saída para as organizações sindicais. Os dirigentes sindicais se queixam que as grandes multinacionais fazem práticas abertas contra o trabalho sindical, denigre a imagem do dirigente sindical. Tudo isso, porém, sempre houve. E houve de forma muito pior. Quem viveu a ditadura militar sabe muito bem. Em plena década de setenta, em plena vigência do AI-5 (Ato Institucional N.º 5), a Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista), uma estatal, vivia sob permanente vigilância. Para entrar e sair da Cosipa era realmente processo de identificação. Mesmo assim, os trabalhadores transformaram as portas dos banheiros da Cosipa em jornais. O último turno apagava o que tinha sido escrito e, desta forma, prepararam a chamada Greve da Amnésia. No dia combinado ninguém levou o cartão. Havia cerca de 30 mil operários para entrar. Os generais diziam que no Brasil não havia greves. A ideologia era de que o brasileiro é pacífico e não faz greve. Aí, de repente, o governo se viu diante de 30 mil trabalhadores paralisados. O que fazer? Sentar, negociar e calar a boca. Porque, do contrário, seria mostrar ao mundo que no Brasil havia greve, sim. Dentro de qualquer regime, você consegue um meio de se organizar. A história do movimento sindical deu exemplos disso. No caso do assédio moral, os trabalhadores e os sindicatos não souberam trabalhar com a subjetividade, com o sofrimento. E foi isso justamente que as empresas souberam trabalhar de forma extraordinária. Hoje, um gerente dentro de uma empresa é uma pessoa extremamente preparada em relação ao que pensa cada trabalhador, seus anseios e desejos mais pessoais. Do contrário, não conseguiriam fazer o assédio moral e o straining. As empresas investiram nisso, começaram a se transformar no ideal de vida do empregado, mesmo sendo uma empresa que pratica o mal. Adotam uma administração que envolve emocionalmente e psicologicamente um conjunto grande de trabalhadores. Um mercadinho não é aberto, hoje, sem que antes se faça uma análise profunda do consumidor, da dona-de-casa. E os sindicatos não pensaram nisso embora ainda esteja em tempo de acumular bastante pesquisa para conseguir fazer frente a tanta perversidade.

?Países como Noruega, Suécia, Austrália e França já possuem legislação própria contra o assédio moral. No Brasil, existem articulações no Congresso Nacional visando punir o agressor ou tipificar a conduta criminosa??

Há vários projetos de lei tramitando no Congresso Nacional, alguns no sentido de tipificar como crime, e tem um desses projetos de lei, de autoria do deputado federal Mário Passos, que parece que está mais adiantado nas comissões da Câmara. Eu sonho que para o assédio moral haja uma legislação específica da natureza da Lei Maria da Penha, no sentido de como foi elaborada. Foi um processo amplo de mais de quatro anos de discussões entre os movimentos de mulheres, de homossexuais, e veio à luz um documento jurídico que é um monumento. Quando a Lei Maria da Penha descreve as várias formas de violência, define inclusive o assédio moral doméstico, a violência psicológica. Nessa definição, aquela legislação é brilhante, extraordinária. Qualquer projeto de lei que efetivamente vise coibir e prevenir o assédio moral e as outras formas de violência no trabalho necessariamente tem de passar por um processo amplo de discussão entre as entidades sindicais e os diversos movimentos dos trabalhadores organizados. Só desta forma a gente vai poder ter um instrumento eficaz e uma lei que efetivamente pegue. Que é um outro problema grave no Brasil, as leis que não pegam, que ficam apenas no papel.

E-mail: edesiopassos@terra.com.br

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