Maioridade civil e as medidas do ECA

No site Consultor Jurídico (12.1.03) o advogado Alberto Bezerra de Souza defendeu a tese de que, doravante, por força do novo Código Civil (que fixou a maioridade em 18 anos), nenhuma medida socioeducativa do ECA pode ter aplicação após essa idade. Com a devida venia ousamos discordar desse entendimento.

Vejamos, a seguir, os principais argumentos do r. articulista bem como nossos contra-argumentos:

“Não restam dúvidas – dizia o articulista citado – que a intenção das normas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente é a de que as regras ali contidas somente serão aplicadas até o limite da maioridade civil, ou seja, hoje, reduzindo-se ao patamar de 18 anos de idade. Apregoar a idéia de “punição” ao infrator até a idade de 21 anos, após a vigência do novo Código Civil, é repudiar, ao extremo, a extensão de eqüidade e justiça social”.

As medidas e conseqüências previstas no ECA, de fato, tinham (e têm) como limite máximo a idade de 21 anos. Até 10.1.03 esse limite coincidia com a maioridade civil estabelecida no Brasil desde 1917 (21 anos). Essa coincidência, de qualquer modo, é o menos relevante. Fundamental é perceber que não estávamos (como não estamos) diante de uma providência legal tutelar ou protetiva fundada na “relativa incapacidade” do agente. Não se possibilitava (como não se possibilita) a incidência das medidas do ECA até os 21 anos em razão da incapacidade do infrator. Não era essa a razão do dispositivo legal.

O ECA menciona o limite máximo da sua intervenção aos 21 anos, é verdade, porém, não porque considera o autor da infração (do ato infracional) relativamente incapaz, sim, porque detrás disso tudo acham-se razões de prevenção especial e geral. As medidas do ECA também contam com finalidade preventida (tanto em relação ao próprio agente como em relação aos potenciais infratores).

Se compararmos as medidas legais que o Código de Processo Penal tomava frente a quem não tinha 21 anos (nomeação de curador, dupla titularidade para o exercício do direito de queixa ou de representação, etc.) veremos que, aí sim, eram providências legais protetivas, tutelares, fundadas na “relativa incapacidade” da pessoa (para praticar atos da vida civil assim como processuais). O novo Código Civil, portanto, revogou ou derrogou todos esses dispositivos legais protetivos do CPP, porque agora a pessoa com 18 anos pode praticar todos os atos da vida civil e processuais livremente.

No que concerne ao Direito Penal e ao ECA, entretanto, praticamente nenhum efeito derrogatório deriva da nova maioridade fixada pelo Código Civil.

Porque o fundamento da atenuante da menoridade penal (até 21 anos – CP, art. 65, I) é outro (é a imaturidade do agente para suportar, tanto quanto os adultos, os efeitos da pena, sobretudo de prisão). Do mesmo modo, o fundamento de se submeter o ex-menor (o jovem-adulto), até aos 21 anos, às medidas do ECA, não estava na sua relativa incapacidade para a prática de atos civis, senão na necessidade de recuperá-lo (para a convivência em sociedade), assim como de intimidar (ou desestimular) os potenciais autores de atos infracionais.

“O limite, portanto, agora, é o mesmo da maioridade penal, ou seja, 18 anos. Todo e qualquer processo, em andamento ou findo, deverá ser extinto por perda de objeto da atividade estatal, quando o infrator já tenha alcançado a maioridade civil.”

Em nossa opinião, todo processo em andamento ou findo deve continuar tramitando normalmente, até que o agente cumpra os 21 anos. Não se deu a perda de objeto da atividade estatal. O Estado pode e deve fazer cumprir as medidas impostas aos ex-menores (jovens-adultos). Isso é e será feito em nome da prevenção especial (recuperação) e da prevenção geral (confirmação da norma violada; intimidação dos potenciais infratores, etc.).

O fato de o ex-menor ter alcançado a maioridade civil (18 anos) em nada impede que o Estado continue exercendo seu direito de executar as medidas aplicadas. Ao contrário, com maior razão, deve mesmo torná-las efetivas.

“Não é demais repetirmos o julgado do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, quando este, claramente, evidencia, em sua interpretação, que o legislador teve por intenção, no caso, a maioridade civil como termo da persecução punitiva estatal. Vejamos novamente: “Processo Penal. Habeas corpus. Estatuto da Criança e do Adolescente. Menor que adquire a maioridade no cumprimento da medida socioeducativa. Atingida a maioridade civil, nenhuma medida socioeducativa pode continuar a ser executada. Informação do juiz da Infância e Juventude dando conta de o paciente ter sido colocado em liberdade. Habeas corpus prejudicado (STJ-6.ª Turma – HC 12.081/SP – Rel. Min. Paulo Gallotti – j. 05/06/2001 – j. unânime) (Não há destaques no texto original)”.

Não há dúvida que o limite máximo para a incidência do ECA é a idade de 21 anos. Que coincidia, até 10.01.03, como salientamos, com a maioridade civil. De qualquer maneira, se quando o agente era considerado relativamente capaz já se podia submetê-lo às medidas do ECA, agora, com maior razão, não há motivo para modificação alguma, visto que a maioridade se alcança aos 18 anos. Antes se dizia: atingida a maioridade civil nenhuma intervenção do Estado pode perdurar. Agora devemos dizer: atingido o limite de 21 anos nenhuma pretensão estatal pode ser efetivada.

Fundamental é recordar que antes, quando o agente atingia 21 anos acabava o direito de punir do Estado não porque ele passava a poder praticar livrevemente os atos da vida civil, sim, porque essa idade (21 anos) era e é o patamar que o legislador reputou como razoável para a incidência das medidas do ECA (em termos de prevenção: geral e especial).

“Dessarte, sobretudo, aqueles que estiverem encarcerados, e tiverem alcançado a maioridade civil, deverão ser postos em liberdade. A norma deve ser interpretada de maneira mais humana e benigna e, portanto, manter alguém enclausurado, ou mesmo respondendo a processo, nestas condições, atenta contra os princípios da Justiça Social e do bem-estar do infrator.”

Com a devida venia, pensamos de modo distinto. Os que estão encarcerados devem continuar nessa situação, até o limite imposto na respectiva decisão. Lógico que devemos sempre que possível adotar interpretações mais humanas e benignas, porém, essa razão é só uma das que devemos levar em conta no momento de interpretar as leis. O bem-estar do infrator é algo que devemos considerar, mas também há razões outras relevantes que não podem ser abandonadas: prevenção de novas infrações, confirmação da validade da norma violada, relevância e reafirmação dos bens jurídicos atingidos pelo ex-menor v.g.

Em suma, quando o ECA prevê que suas medidas podem alcançar (até) a idade de 21 anos, o faz não como medida protetiva ou tutelar fundada na capacidade relativa do agente, senão como instrumento de proteção do próprio jovem-adulto e da sociedade. Os interesses em jogo não são exclusivamente os do ex-menor (infrator). Também há relevantes interesses da sociedade (prevenção de infrações) em tudo isso. Por isso que a nova maioridade civil (18 anos) em nada afetou a vigência ou validade do ECA (segundo nosso juízo).

Ubi eadem ratio idem jus: onde as mesmas razões, o mesmo Direito. Porém, onde não coincidem as razões, o Direito não pode ser o mesmo.

Luiz Flávio Gomes

(falecom@luizflaviogomes.com.br). Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, co-fundador e 1.º presidente do IBCCRIM e coordenador-geral dos Cursos Prima-Ielf (cursos ao vivo e via satélite por tv digital para todo o País –
www.ielf.com.br).

Voltar ao topo