Loja de conveniências

O que um eleitor mais esclarecido vai pensar quando enxergar a mistura partidária formada na loja de conveniências, voltada para atender aos interesses dos candidatos às eleições de outubro? Estampará ar de aprovação ou riso de escárnio ao constatar que Carlos Bolsonaro (PTB), filho do deputado Jair Bolsonaro, porta-voz da direita mais radical, defende com unhas e dentes o candidato petista a prefeito do Rio de Janeiro, Jorge Bittar, um dos ícones da esquerda clássica?

Impressionante não é o tecido amorfo exposto pelo jogo interesseiro dos conchavos, por demais previsível na configuração das forças políticas, mas a velocidade com que o processo de esterilização ideológica tem se dado. Há bem pouco, os atores acima, com seus correligionários e adeptos, se matavam em palanques separados por discursos exacerbados e visões diametralmente opostas. Hoje, se dão as mãos na esteira de uma operação que, ao confundir os cidadãos, amplia as distâncias entre a sociedade e o sistema político. É sabido que a expansão econômica e a ruptura das barreiras ideológicas, dentro de um processo evolutivo que se arrasta desde a queda do Muro de Berlim, têm contribuído para o desvanecimento de antagonismos de classes, a despolitização e a personalização do poder. Em países de instituições em processo de consolidação, como o Brasil, o efeito desse fenômeno se faz sentir particularmente sobre a identidade partidária, expandindo-se, em conseqüência, o desinteresse dos aderentes e o amortecimento de ideais doutrinários.

Esperava-se do PT um mínimo de substância ideológica para levar a cabo o projeto eleitoral de 2.004, tendo em vista o lastro formado por anos a fio de persistente doutrinação. O que está se vendo, porém, é a determinação do partido de fincar as estacas de seu projeto de longo prazo, que se firma na decisão de apresentar candidatos próprios em 23 capitais do país, atraindo com a força do rolo compressor apoios de todos os lados. O PT, quem diria, que tanto criticou a velha política, transforma-se no ícone dos partidos catch all (agarra tudo e todos), abandonando o colchão da ética e da responsabilidade social em que dormiu por quase três décadas. Que projeção pode se fazer após o maior ajuntamento de siglas da história das eleições nacionais? Se todos os partidos misturam-se para formar a maior geléia interpartidária já vista no país, a conclusão é a de que, em vez de terreno firme para o eleitor pisar, sobrarão perfis individuais para ofuscar os olhos dos cidadãos. Por conseguinte, os mesmos cidadãos procurarão outros pólos de referência. O enfraquecimento partidário resultará no adensamento de novas formas de representação simbólica.

O ciclo político pós-eleitoral estará seguramente voltado para a colagem dos cacos e recomposição dos quadros. Mas a junção de partes e perfis que não se encaixam corre o risco de gerar feições frankesteinianas aos partidos. É de se acreditar, portanto, em uma engenharia mais cuidadosa para a operação política, pela qual se farão agregações e composições, a partir de uma estrutura de conceitos que levem em consideração o fortalecimento partidário. A reforma política encaixa-se como uma luva nessa moldura. E aí aparecerão os instrumentos que, até agora, têm sido postergados: as listas ordenadas ou fechadas para fortalecer os partidos, a proibição das migrações inter-partidárias durante o mandato, o aperfeiçoamento da representação dos Estados na Câmara dos Deputados e a questão das coligações em eleições proporcionais, entre outros.

O subdesenvolvimento partidário brasileiro chega ao clímax com as eleições de outubro. Nos EUA, os dois principais partidos (Democrata e Republicano) carregam sólidas convicções a respeito dos temas de significação social. Guardam distinções doutrinárias. Na Europa, mesmo com os rearranjos nos principais campos partidários, as siglas conservam um verniz conceitual, que os coloca nas faixas do trabalhismo, do liberalismo, do conservadorismo, da democracia social, do socialismo, do social-liberalismo e até do velho comunismo.

No Brasil, o teatro de marionetes políticas está com seus dias contados. Risível, para não dizer ridículo, é aplaudir radicais trotskistas dançando nos arraiais do liberalismo, fechando os olhos ao “Consenso de Washington”, sob o olhar complacente de aguerridos companheiros petistas, que constroem sua ponte para o futuro com o cimento do fisiologismo e o aço do adesismo. E, vez ou outra, brandindo o discurso messiânico de felicidade eterna.

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