Legitimidade do Ministério Público do Trabalho para a defesa de direitos individuais homogêneos

1. Histórico legal

A legitimidade do Ministério Público para o ajuizamento de ação civil pública teve início com a Lei n.º 6.938/81, passando pela Lei Complementar n.º 40/81 e Lei n.º 7.347/85.

A Constituição Federal em dois momentos confirmou essa legitimidade: presumidamente, no art. 127, ao dispor sobre as suas funções institucionais; e, expressamente, no art. 129, § 1.º.

Posteriormente, veio a lume o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/90), que também a ela alude (art. 82, inc. I).

O Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, no que se refere, especificamente, à legitimidade para a defesa de interesses individuais homogêneos, assim sumulou: “O Ministério Público está legitimado à defesa de interesses individuais homogêneos que tenham expressão para a coletividade, como: a) os que digam respeito à saúde ou à segurança das pessoas, ou ao acesso das crianças e adolescentes à educação; b) aqueles em que haja extraordinária dispersão dos lesados; c) quando convenha à coletividade o zelo pelo funcionamento de um sistema econômico, social ou jurídico” (in TEIXEIRA, João Carlos. Dano Moral Coletivo na Relação de Emprego. Temas Polêmicos de Direito e Processo do Trabalho. NORRIS, Roberto (coordenador). São Paulo: LTr, 2000. p. 131).

Deixou assente, pois, que o Ministério Público pode e deve assumir a defesa de quaisquer direitos ou interesses, condicionada sua legitimidade, entretanto, à revelada conveniência para a sociedade como um todo.

No processo do trabalho é a Lei Complementar n.º 75/93 que institui pressupostos e prerrogativas ao Ministério Público do Trabalho para a propositura de ação civil pública, dispondo, em seu art. 83, III, que o MPT atuará “na defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos”, e, em seu art. 84, que a ele incumbe exercer as funções institucionais previstas nos Capítulos I, II, III e IV, do Título I, quais sejam, a de promoção do inquérito civil e ação civil pública para a defesa “de outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos” e as de defesa “de interesses individuais homogêneos” (art. 84 c/c art. 6.º, VII, “dª).

2. Teoria restritiva

Eduardo Gabriel Saad entende que a lei, indiscutivelmente, dá legitimidade ao Ministério Público do Trabalho para ajuizar ação civil pública apenas a amparar interesses coletivos que se vinculem aos direitos sociais inscritos nos artigos 7.º e 11 da Constituição Federal, e não para a defesa de interesses difusos e individuais homogêneos (SAAD, Eduardo Gabriel. A ação civil pública na justiça do trabalho. Processo do Trabalho. Estudos em homenagem ao Professor José Augusto Rodrigues Pinto. Coord. Rodolfo Pamplona Filho. São Paulo: LTr, 1997. p. 409-410).

Tem por inaceitável a conclusão de que, havendo macrolesão oriunda ou indiretamente do contrato de trabalho, o Ministério Público do Trabalho estaria legitimado. Segundo aduz, “Se o MPT for autorizado a atuar, livremente, em campo que abranja todas as situações jurídicas enumeradas no inciso VII do art. 6.º da LC, iremos, inevitavelmente, assistir a um deplorável conflito de atribuições entre o MPT e os dois outros ramos do Ministério Público da União” (SAAD, Eduardo Gabriel. A ação civil pública na justiça do trabalho. Processo do Trabalho. Estudos em homenagem ao Professor José Augusto Rodrigues Pinto. Coord. Rodolfo Pamplona Filho. São Paulo: LTr, 1997. p. 410).

3. Teoria eclética

Na mesma esteira da Súmula n.º 07 do Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, Amarildo Carlos de Lima sustenta a defesa de interesses de meros grupos determinados ou determináveis de pessoas pelo Ministério Público do Trabalho quando isso convenha à coletividade como um todo, ou seja, quando haja relevância social (A ação civil pública e sua aplicação no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2002. p. 65).

O Ministério Público do Trabalho, para este autor, seria exatamente uma das partes legítimas para o mister, seja em função da Lei Complementar n. 75/93 (art. 83, III c/c art. 6.º, d), seja pelos ditames constitucionais que lhe atribui o encargo de defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e (também) individuais indisponíveis (art. 127, Constituição da República Federativa do Trabalho), ressalvando-se, no entanto, as mesmas observações no sentido de se evitar que a instituição se torne tutora de interesses genuinamente privados sem qualquer relevância social.

Prestigiando essa distinção, sob o fundamento de que a lei contempla, basicamente, duas espécies de ações: uma, para a tutela de direitos coletivos stricto sensu e difusos, e, outra, para a tutela de direitos individuais homogêneos, estão Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart e, igualmente, João Batista de Almeida (MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do processo de conhecimento. São Paulo: RT, 2001. p. 691).

O Código de Defesa do Consumidor suscita, de fato, essa defendida diferenciação (entre ação civil pública e ação coletiva), ao intitular seu capítulo II “Das ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos”. Entretanto, para Márcio Flávio MafraLeal, a polêmica é “inócua em termos práticos e teóricos”, explicando que a ação civil pública era, originalmente, o nome da ação do Ministério Público como autor, não havendo relação com a dimensão difusa e coletiva do direito material, dimensão esta assumida somente com a Lei n.º 7.347/85 (LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Fabris, 1998. p. 188).

Para este autor (ob. e p. cit.), com a Lei da Ação Civil Pública (LACP) ocorreram duas transformações teóricas e dogmáticas relevantes, segundo explicita: a primeira, foi o desligamento da ação civil pública como instrumento processual de titularidade exclusiva do Ministério Público, pois associações e outros ramos políticos do Estado também foram legitimados para o seu ajuizamento; e, a segunda, foi a concepção da ação civil pública como ação coletiva.

Na teoria que aceita a legitimidade do Ministério Público do Trabalho para a defesa de interesses individuais homogêneos condicionada à defesa de direitos constitucionalmente garantidos, cujo desrespeito, nas palavras do Ministro Manoel Mendes de Freitas (apud ROBORTELLA, Luiz Carlos de Almeida. Ação Civil Pública. II Ciclo de Estudos de Direito do Trabalho. Foz do Iguaçu – PR. Escola Nacional de Magistratura e Instituto dos Advogados de São Paulo. Dez/95), traz o germe da inquietação pública, podemos vislumbrar que seus defensores vêem na expressão “interesses coletivos”, mencionada no inciso III do art. 83 da Lei Complementar n.º 75/93, um sentido latu sensu, que abrange, além dos interesses coletivos stricto sensu, também os interesses difusos e individuais homogêneos.

Isso fica muito claro quando acrescentamos o pensamento de Manoel Antonio Teixeira Filho:

“Entrementes, se examinarmos a matéria sob a perspectiva institucional, que nos parece ser a recomendável, não teremos dificuldade em concluir que o Ministério Público do Trabalho detém legitimidade para ajuizar ação civil pública também com o objetivo de promover a defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos.

Esclarece que a Constituição Federal de 1988 exaltou sobremaneira o Ministério Público “cometendo-lhe a atribuição de promover a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. É evidente que a Constituição não aludiu, de maneira expressa, aos direitos individuais homogêneos, porque o conceito destes foi introduzido pela Lei 8.078, de 1990 (art. 81, inciso III. (…)”.

Desse modo, para o autor citado, “o Ministério Público do Trabalho detém legitimidade para exercer a ação civil pública devotada à defesa de interesses: a) difusos; b) coletivos; c) individuais homogêneos. Devemos reiterar a nossa advertência quanto à possibilidade de estes últimos, a despeito de serem individuais, assumirem, no seu conjunto, feição coletiva, cuja violação poderá acarretar graves pertubações à ordem jurídica estabelecida (Constituição Federal, art. 127). De qualquer forma, o precitado dispositivo constitucional atribui ao Ministério Público, também, a incumbência de empreender a defesa dos interesses individuais” (Curso de Processo do Trabalho: Ação Civil Pública. São Paulo: LTr, 1998. p. 19 -grifos existentes no original).

4. Teoria ampliativa

O art. 83, III, da Lei Complementar n.º 75/93 não se refere aos interesses individuais homogêneos, mas, ao contrário, o caput do art. 84, cristalinamente, sim. Ao se remeter ao Capítulo II do Título I, insere dentre as atribuições do Ministério Público do Trabalho a promoção de ação civil pública para a defesa de “outros interesses individuais, indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos” (art. 6.º, inc. VII, alínea “d”), ou seja, autoriza a tutela dos interesses individuais homogêneos através de ação civil pública trabalhista ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho.

Carlos Henrique Bezerra Leite (LEITE, Carlos Henrique Bezera. Ministério Público do Trabalho. Doutrina, jurisprudência e prática. São Paulo: LTr, 1998. p. 125), num primeiro momento, chegou a defender que a atuação do Ministério Público do Trabalho deveria efetivar-se somente nas hipóteses em que a lesão a essa espécie de direitos ou interesses pudesse trazer reflexos deletérios para a coletividade, ou seja, quando houvesse relevância social, de acordo com o entendimento dos nomeados autores retro citados e da Súmula n.º 7 do Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo.

Hoje, entretanto, em sua recente 2.ª edição, de 2002, esse autor já revê seu ponto de vista: “Todavia, melhor refletindo sobre a temática em questão, reconhecemos o nosso equívoco e passamos a admitir, incondicionalmente, a legitimação do Ministério Público do Trabalho para promover ação civil pública em defesa de quaisquer interesses individuais homogêneos trabalhistas. Trata-se, a nosso ver, de uma legitimação inspirada nas class actions for damages do direito norte-americano” (LEITE, Carlos Henrique Bezera. Ministério Público do Trabalho. Doutrina, jurisprudência e prática. 2 ed. São Paulo: LTr, 2002. p. 184).

Levando em conta três objetivos básicos desse instrumento paradigma do sistema do common law (o de permitir a aglutinação de diversos litígios individuais numa única demanda coletiva (1); o de amenizar algumas barreiras psicológicas e técnicas que impedem ou dificultam o acesso judicial individual da parte fraca (2); e o de desestimular condutas sociais indesejáves (3), que se identificam no contexto social, econômico, político e jurídico da realidade de nosso País, explica que o legislador adaptou o sistema do common law ao sistema de civil law, conferindo a legitimação ativa nas ações coletivas destinadas à defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos, não aos indivíduos, mas a algumas instituições, entre elas o Ministério Público (Ob. cit. p. 185).

Em continuação, didaticamente, nos faz entender:

“É verdade que os arts. 129, III, da CF e 83, III, da LOMPU não mencionam, expressamente, os interesses individuais homogêneos, razão pela qual surgiram três teorias que procuram justificar a legitimação ad causam do Ministério Público do Trabalho para promover a ação civil pública em defesa de tais interesses: a restritiva, a eclética e a ampliativa.

Pela teoria restritita é utilizada “apenas a interpretação gramatical dos artigos citados e sustenta, em linhas gerais, até mesmo a inconstitucionalidade dos mesmos”.

A teoria eclética, com a qual Carlos Henrique Bezerra antes concordava, “emprega a interpretação sistemática dos arts. 129, III, e 127 da CF, mas somente admite condicionalmente a legitimação do MP, isto é, apenas para defender interesses individuais homogêneos indisponíveis ou que tenham relevância social” ( Ob e p. cit.).

Finalmente, diz o autor citado, que passou a cerrar fileiras com a teoria ampliativa, que esta se vale “tanto da interpretação sistemática quando da extensiva e teleológica, na medida em que invoca os arts. 129, IX, e 127 da CF, combinados com o art. 1.º do CDC. Essas normas aplicadas de forma integrada, tal como permitido pelos arts. 21 da LACP e 90 do CDC, autorizam a ilação de que a defesa de quaisquer interesses individuais homogêneos constitui matéria de ordem pública e de interesse social, cuja defesa de amolda integralmente ao perfil institucional do Ministério Público, por força do inciso IX do art. 129 da CF. Afinal, os direitos ou interesses individuais homogêneos dos trabalhadores são sempre direitos sociais, ou direitos humanos de segunda dimensão, independentemente de serem disponíveis ou indisponíveis, estando, pois, ao albergue incondicional da proteção institucional do Parquet, ex vi do art. 127 da CF”.

Nesse diapasão, lembramos o que disse o Exmo. Juiz Cacique de New York: a visão individualista do direito, determinada pelo exercício do seu titular, não mais se amolda aos tempos atuais, de necessidades coletivizadas. Hoje, a lesão a direito individual ecoa no coletivo social, até como forma de ameaça. A injustiça – no ensinamento de Montesquieu – feita a um só homem é uma ameaça feita a todos (TRT 22.ª Reg. AC 159/96. Rel. Juiz Cacique de New York. Revista Gênesis, Curitiba, jun/96. p. 824-825).

Luiz Eduardo Gunther

é juiz do TRT da 9.ª Região.Cristina Maria Navarro Zornig é assessora no TRT da 9.ª Região.

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