Laboratórios: Falso Positivo e Responsabilidade Civil

Quando se põe em relevo o trabalho do médico patologista, radiologista, hematologista, ou do bioquímico, em exames radiológicos e análises laboratoriais, doutrina e jurisprudência tendem a qualificar a obrigação contraída pelo profissional como sendo de resultado. A propósito da distinção alvitrada por DEMOGUE, oportuno fixar: “(…) Nas obrigações de resultado, a culpa se presume a partir do descumprimento, bastando ao credor demonstrar a existência da obrigação e afirmar a inexecução, incumbindo ao devedor (o médico) provar sua diligência e elidir tal presunção, evidenciando a ocorrência de causa diversa. Nas obrigações de meios, ao contrário, nenhuma presunção socorre ao credor (o paciente), cabendo a este provar que o devedor agiu com culpa ou descumpriu as regras técnicas da profissão.” (V. nosso “Responsabilidade Civil do Médico”, 5.ª ed., RT, 2003, p. 221).

Isto porque, em princípio – como observa o civilista uruguaio JORGE GAMARRA (in “Responsabilidad Civil Medica”, Montevidéu: FCU, 2000, vol. 1, p. 310 ss.) – os laboratórios respondem pela exatidão dos seus exames, os quais, em regra, não envolvem nenhuma álea; ao contrário, tais análises mais se aproximam das ciências exatas. Menciona caso em que o exame realizado indicou feto normal e do sexo feminino – ao passo que nasceu um menino, com síndrome de Down. Como no Uruguai proíbe-se a interrupção da gravidez, condenou-se o laboratório (TAC 4.º, 08.4.1996) à compensação do dano moral decorrente da brusca frustração dos pais, que durante quatro meses tiveram a certeza do nascimento de uma filha sadia. Não comprovou o demandado que o erro teria sido escusável ou passível de enquadramento em situação excepcional, determinante de uma margem de erro aceitável, por menor que fosse, pela limitação da técnica empregada.

Em casos de exames mais simples (como o de urina, p.ex., ou em alguns tipos de exame de sangue), haveria escassa possibilidade de erro, que dificilmente chega a comprometer o resultado. Trata-se de análises rotineiras, às quais se aplicam regras técnicas consagradas e invariáveis – que devem, por isso mesmo, conduzir a uma solução exata. É a opinião, também, de DORA SZAFIR e BEATRIZ VENTURINI (in “Responsabilidad Civil de los Medicos y de los Centros Asistenciales”, 2.ª ed., Montevidéu: FCU, 1992, p. 81), para quem as análises clínicas e certos tratamentos, de freqüente utilização e avançada técnica, caracterizam obrigação de resultado.

Todavia, estar-se-á diante da obrigação de meios, quando a análise contiver risco de erro, por ser a interpretação mais delicada, como é o caso de intervenções invasivas, profundas, para se extrair material para biópsia – exemplo mencionado por VAZQUEZ FERREYRA (In “Daños y perjuicios em el ejercicio de la medicina”, Buenos Aires: Hammurabi, 1992, p. 102 ss.). Indica GAMARRA a necessidade, por vezes, do concurso de perito, para elucidar o grau de complexidade do exame.

Também JEAN PENNEAU (in “La Responsabilité Médicale”, Paris, Sirey, 1977, p. 38) conclui que, em princípio, o patologista contrai obrigação de resultado, mas em certas hipóteses particulares – análises complexas, sujeitas à interpretação – a obrigação é mesmo de meios. MÉMETEAU (in “Le droit medical”, Paris: Litec, 1985, p. 468), lembrado por GAMARRA, menciona julgado de Toulouse (14 déc. 1959): em exame de sangue, para determinação de grupo sangüíneo e fator Rh, a atividade profissional não comporta nenhuma álea, no estado atual dos conhecimentos científicos – ao contrário do que afirmaram os primeiros juízes. O ato médico, em tal caso, reduz-se a uma atividade técnica, jungida a regras estritas e estandardizadas, que devem necessariamente conduzir a uma solução exata.

Corretas, por conseguinte, as observações do magistrado mineiro JURANDIR SEBASTIÃO, em sua abrangente e utilíssima obra “Responsabilidade Médica – Civil, Criminal e Ética” (3.ª ed., Belo Horizonte : Del Rey, 2003, pp. 193-195):

“(…) Esse mister se constitui em contrato de meios. Quando o resultado técnico tiver margem de erro, de imprecisão ou de índice estatístico, esses percentuais devem ser registrados em cada item do laudo, para ciência do médico e do paciente. Se eventualmente o resultado for incorreto, mas com adoção das técnicas recomendadas, o técnico incumbido (médico, analista, bioquímico) nenhuma responsabilidade terá. Em caso de dano ao paciente, a prova do nexo causal é ônus de quem alega, enquanto ao profissional incumbe provar conduta regular no exercício da função técnica. (…)

Se o médico causar dano ao paciente, com base no resultado incorreto da análise clínica, mas cometendo erro grosseiro (deixar de pedir novo exame, por exemplo, quando o resultado laboratorial for incompatível com o quadro clínico do paciente), responderá pela indenização, solidariamente com o laboratório. De qualquer forma, em caso de constatação laboratorial de doença grave, além do dever de pedir exames de confirmação, deve o médico dar a notícia de forma adequada ao paciente, com as ressalvas que se fizerem oportunas, tanto para não levar mais desesperança ao doente – cumprimento da obrigação ética do bom relacionamento médico/paciente – como para não gerar outros gravames desnecessários, a exemplo do dano moral.”

Como se vê, a doutrina nacional e alienígena, que a princípio identificavam, na atividade médica ligada à análise clínica e laboratorial, uma obrigação de resultado, tem evoluído, principalmente em função da maior complexidade desses exames. FERNÁNDEZ HIERRO, por exemplo (in “Sistema de Responsabilidade Médica”, 4.ª ed., Granada: Comares, 2002, p. 433), enquadra os exames comuns e menos complexos dentre as obrigações de resultado; em análises mais complicadas, nas quais as reações nem sempre são homogêneas e facilmente identificáveis, o médico assumiria obrigação de meios. E conclui o autor espanhol: “Finalmente, é de se destacar que nem todo equívoco em análises terá conseqüências no âmbito da responsabilidade civil, já que o mero erro nem sempre acarretará prejuízo, que necessitará ser demonstrado. (…)”

Têm-se tornado freqüentes demandas indenizatórias movidas por pacientes que, após se submeterem a exames de laboratório, tomam ciência do resultado positivo para doenças de difícil – ou quase impossível – cura: AIDS e câncer, as principais. O laudo é apresentado de forma conclusiva, sem nenhuma ressalva. Depois, renovadas as análises, constata-se o erro do profissional, dada a absoluta ausência da enfermidade equivocadamente identificada.

Em tais casos, caracteriza-se o dano moral puro, quando não advém qualquer outra conseqüência, além do impacto emocional provocado pelo errôneo resultado alvitrado pelo laboratório. É inegavelmente danoso o fato de o paciente conviver – enquanto não retificado o erro – com o espectro de insidioso mal (câncer ou HIV, principalmente), transformado em ameaça concreta à sua vida. A apreensão, o desassossego, a depressão causada pelas perspectivas funestas de uma existência precocemente ceifada por essa morte anunciada, a prostração e a tristeza pelo prognóstico de intenso sofrimento, da cura longínqua ou impossível, povoam o cotidiano do lesado, na conturbada quadra em que prevalece a peremptória – e equivocada – conclusão do laboratório.

Todavia, se o paciente, confiante no errôneo resultado, dá início a tratamento quimioterápico, por exemplo, ou qualquer outra forma de terapia agressiva, apta a produzir seqüelas, o dano à pessoa poderá assumir matizes diversos – e, por óbvio, torna-se igualmente indenizável.

Em nota de rodapé, JURANDIR SEBASTIÃO menciona decisão proferida, no STJ, pelo voto condutor do Ministro RUY ROSADO, cuja transcrição, “passim”, revela-se oportuna:

“(…) A questão que se põe é a seguinte: sofre dano injusto a paciente que recebe laudo com falso resultado positivo de HIV, com a afirmação de que o exame fora repetido e confirmado pelo laboratório? A ressalva de que a positividade pode ser devida a anticorpo inespecífico, sendo possível a necessidade de testes confirmatórios, devendo ser o resultado interpretado pelo médico, exclui a responsabilidade do laboratório que realizou o exame?

Penso que o serviço mal feito, e no caso isso aconteceu porque todos os exames realizados depois, em outros laboratórios (fls. 27/29), chegaram a diverso resultado, causou à autora um sofrimento a que ela não estava obrigada, gerando o direito de indenização. Talvez isso tenha decorrido do método usado, ou do modo pelo qual foi realizado o procedimento, isso aqui não importa, uma vez que o laboratório assumiu a obrigação de realizar o exame e fornecer informação correta a respeito da qualidade do sangue que recebeu. Se isso pode ser feito pelos outros dois laboratórios consultados, não há como deixar de exigir o mesmo do laboratório-réu, que se equivocou nos exames que realizou e repetiu.

Se não for assim, todo laboratório que inserir uma ressalva a respeito da veracidade das conclusões de seus laudos estaria isento de responder pelo erro da sua investigação.

Assim, tenho que há responsabilidade pela preocupação desnecessária que o laboratório criou no espírito da autora, fornecendo-lhe um resultado equivocado, mas afirmando que o exame foi repetido e confirmado, a reforçar a idéia do acerto. A ressalva acima referida diminui e muito a responsabilidade pelo mau serviço, pois alertou sobre a relatividade da conclusão e encaminhou a paciente ao seu médico, mas não a exclui totalmente. (…)” (STJ – Rec. Esp. n.º 401.592-DF. Fixou-se a compensação pelos danos morais, neste caso, em R$5.000,00. No TAPR, a questão foi abordada, dentre outras, na Ap. Cível n.º 190369-3 – 1.ª Câm. Cív. – Rel. Juiz Arquelau Araújo Ribas – DJE 29.4.2003 – R$6.000.00 e 241898-0 – 6.ª Câm. Cív. – Rel. Juiz Miguel Kfouri Neto – DJE 16.3.2004 – R$12.000,00.)

O Desembargador SÉRGIO CAVALIERI FILHO (in “Programa de Responsabilidade Civil”, 4.ª ed., Malheiros, 2003, p. 382), alude a julgado do TJRJ, cuja ementa consigna:

“(…) O abalo emocional, a angústia e o sofrimento do casal, diante do diagnóstico feito com base no resultado do exame a que se submeteu o cônjuge mulher, até que um segundo exame apresentou resultado negativo, configura dano moral, que deve ser indenizado. Provimento parcial do recurso, para julgar procedente, em parte, o pedido. (TJRJ, 8.ª C., Ap. cível 8.505/97, Capital, rel.ª Des.ª Cássia Medeiros, j. 28 de março de 2000, v.u.).”

Enfim, ao produzir, sem nenhuma ressalva, falso resultado, o patologista revela negligência, ao passo que o laboratório presta mal o serviço que se propôs a fornecer. Tornam-se, por isso, responsáveis pela inarredável obrigação de compensar os danos infligidos à vítima, tanto pelo agir culposo do médico, quanto pela responsabilidade objetiva da pessoa jurídica.

Miguel Kfouri Neto

é juiz do Tribunal de Alçada do Estado do Paraná; Ricardo Luís Lopes Kfouri é assessor Judiciário do TAPR.

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