Justiça por atacado

“Essa luz no rosto lembra polícia. Luz no rosto dá vontade de confessar e eu quero ficar longe disso.” As palavras são do ministro Nelson Jobim, vice-presidente do Supremo Tribunal Federal – STF, durante palestra sobre a reforma do Judiciário a estudantes de Direito, advogados e professores, segunda-feira última, em São Paulo. Ele estava um pouco irritado com a luz dos holofotes e desceu para mais próximo da platéia que o ouvia. E confessou: que a Constituição-cidadã tem dois artigos sem a aprovação dos constituintes de 1988; que a Suprema Corte, abarrotada, julga processos por atacado.

Para fazer revelações às suas platéias, conferencistas profissionais cobram caro. Não seria o caso do ministro que, pelo menos no tema dos artigos intrujões da nossa Constituição, fez suspense recomendando que se espere por seu livro que, decorrido o prazo de 15 anos de segredo que lhe teria imposto o “doutor Ulisses”, haverá de lançar contando tudo. Mais que um golpe de marketing antecipado, a revelação desmonta a áurea de gente séria que, a serviço da República, não poderia ter, nem alimentar, esse tipo de segredo. Muito menos com ele compactuar. Que outros segredos pode ter nossa Carta Magna, já remendada e inviável, além de prolixa e incompleta?

Mas enquanto a nação se pergunta que segredos são esses (alguém já os batizou de “segredos de Fátima”, numa alusão às sempre referidas revelações de Nossa Senhora de Fátima em suas aparições a pastores), o mesmo ministro Jobim nos dá motivo a outro passatempo menos agradável: debater sobre o comportamento de nossa mais alta corte, cujos ministros, atabalhoados de tanto serviço, inovaram julgando processos semelhantes em série. Como numa linha de montagem, eles são empilhados e, na base da confiança no ministro-relator (que por sua vez já confia nos seus assessores), são dados por vistos. Vistos e julgados, maioria em definitivo. O procedimento, segundo o efeito dominó das declarações subseqüentes, é adotado também nos outros tribunais superiores.

Que nossa Justiça precisa de reforma, estamos carecas de saber. A reforma do Judiciário já ganhou até secretaria especial no Ministério da Justiça, embora o problema resida no Legislativo, onde o processo está parado há cerca de quatro anos. Que nossa Justiça está entupida da primeira à última instância, eis o drama diário de todos quantos dela dependem. Que essa demora fez nascer um mercado paralelo de créditos judiciais, através de mecanismos em que donos de ações vendem hipotéticos créditos judiciais a preço vil (dez por cento do valor) a quem tem fôlego para a longa espera, isso também é recorrente. Mas que à chamada “indústria dos recursos” se contraponha a “indústria dos julgamentos por atacado”, eis um terreno por demais pantanoso para ficar inexplorado no teor de uma simples conferência.

Além da revelação bombástica, feita de jeito inusitado, o que o ministro quis dizer é que, não fosse esse recurso, tudo estaria pior (como poderiam os ministros julgar 17,1 mil processos cada um em apenas dez meses de trabalho?). E que tal prática é, na verdade, a adoção às avessas da súmula vinculante que tanto debate já rendeu ao País afora e contra a qual se levantam advogados e magistrados. Também, segundo suas explicações, esse procedimento seria uma espécie de “vingança” contra a “indústria da apelação” azeitada principalmente por órgãos do governo – de longe o principal freguês de qualquer tribunal.

Não precisa, entretanto, ser advogado ou juiz para imaginar que a prática do julgamento por atacado implica riscos primários, como aquele decorrente de um mero engano (não falemos em má-fé) de aparência. Essa não é a “modificação em nosso sistema processual” que se apresenta como necessária ao atendimento das expectativas do povo brasileiro, conforme advoga o próprio presidente do STF, Maurício Corrêa.

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